Ainda hoje, após mais de 30 anos no exercício da crítica de teatro voltado para crianças e suas famílias, vibro muito quando vejo um espetáculo que optou pelo persistente caminho didático e o faz de forma competente, sem ser chato, sem dedo em riste, sem tom professoral, com muita diversão e criatividade. Assim é a versão teatral do programa televisivo Quintal da Cultura, em cartaz, no Teatro do Sesi até o fim do ano, com o título de A incrível Viagem do Quintal. Um time de primeiro nível, da produção até a equipe de operação técnica, dá conta de uma atração potente, que demonstra no palco todos os avanços que o teatro infantojuvenil alcançou no Brasil nas últimas décadas – avanços técnicos, temáticos e de linguagem, de forma geral, ainda que persista na base educativa. Dá gosto ver teatro bem-feito, sobretudo de censura livre.
A cortina ainda nem se abriu e um grupo de músicos já surge na boca de cena, saudando o público com figurinos vistosos e muitos sorrisos – prenúncio de que a diversão vai ser boa. Esses músicos, aliás, são parte bem importante do espetáculo. Raramente se vê uma banda ao vivo tão participante, tão integrada ao enredo, participando inclusive nas interpretações, com falas e diálogos. São músicos-atores que fazem desse Quintal uma agradável experiência artística múltipla: Abner Debret, Beatriz Amado, Jana Figarella, Marilia Lopes e Thiago Mota. Uma gente “sem cerimônia”, como se diz dos que são espontâneos e desenrolados na vida. Não são músicos engessados no palco, são graciosos e versáteis. Uma surpresa e tanto.
A meu ver, o grande trunfo desta montagem é ter Fernanda Maia como dramaturga e diretora/criadora musical, uma profissional que já se destaca há anos no cenário teatral paulistano, premiada, criativa e com pleno domínio de seu ofício artístico e criativo. Neste Quintal, Fernanda optou pela forma de jornada, infalível recurso de linguagem, muito utilizado no teatro para crianças. Melhor ainda: ela fez a jornada parecer um jogo de videogame, com fases a serem vencidas e superadas. Identificação imediata com a plateia mirim.
A autora não deixa também de fazer brincadeiras o tempo todo, nos diálogos entre os personagens, como, por exemplo, dar nota 10 para os “Unidos do Quintal”, no último desafio (referência à apuração de notas de escolas de samba no carnaval), ou quando usa trechos da trilha do filme Titanic, com Celine Dion, para marcar o dramalhão feito por um dos protagonistas ao dar falta de seu documento de identidade. Artifícios de boa dramaturgia, querendo incluir os adultos na brincadeira e produzir respiros no fluxo narrativo. Tudo com bom gosto e em boa medida, sem apelações baratas e fáceis.
Em todas as canções que intercalam a ação dessa jornada surge o lado forte da compositora. Nesses momentos ela mostra que sabe com quem está falando. Recheia seus ritmos com letras envolventes, refrões atraentes e, claro, as “mensagens” necessárias. Faz tudo isso sem se valer de pieguismo nem de pregação, provando que é possível fazer uma canção falando que temos de “conhecer para amar, amar para cuidar, cuidar para compartilhar e para viver em paz”, sem que seja uma canção rançosa e chata.
No enredo do espetáculo, o fio condutor da jornada dos personagens são as cinco regiões do Brasil e seus estados. De tal forma que esta é uma peça indicadíssima para professores de Geografia levarem seus alunos. A peça “ensina” sem querer ensinar, brincando, divertindo, mencionando tópicos de provas escolares sem parecer aula de nada. Usa um disparador de plot (personagem perde seus documentos) para falar de identidade de uma forma ampla. O que se busca o tempo todo na jornada não é meramente um RG perdido, mas o autoconhecimento, a noção de ancestralidade, o orgulho de nossas raízes, sejam elas quais forem. Ao dar protagonismo a danças regionalistas (carimbós, cirandas, rancheira, modas de viola, xote, xaxado, maracatu, dança do côco) e a figuras míticas nacionais (Iara, Caipora, Curupira, Saci, Cuca), o espetáculo contribui para a afirmação da identidade e a celebração da cultura popular. No caso da Cuca, ela faz as vezes de vilã no enredo, pois toda história precisa de antagonistas e Fernanda Maia não se esqueceu disso – achei bem curioso como é uma vilã à moda antiga do teatro infantil, daquelas que mostram a língua para as crianças na plateia. Há tempos não via isso numa vilã infantil – e achei um tocante resgate de uma certa ingenuidade que havia nas bruxas e outras figuras malvadas de antigamente.
No mais, temos ainda a camada mais clara e óbvia do espetáculo: a celebração merecida e criativa de um grande e longevo sucesso da TV aberta educativa no Brasil, o programa Quintal da Cultura, no ar desde 2011, criado e dirigido na TV – e agora no teatro – por Bete Rodrigues. Com cenografia do sempre certeiro Marco Lima e figurinos de Edson Braga, a peça reproduz o climão lúdico da televisão, com os atores Helena Ritto, Jonathan Faria, José Eduardo Rennó, Mafalda Pequenino e Fernanda Ventura (todos ótimos) reproduzindo muito bem no palco as características de cada personagem já conhecido das crianças na telinha. Só que agora chamam as crianças de plateia, em vez de “o pessoal de casa”. Vida longa para esse acerto.
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