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Quem representa quem?

Coluna Por Chico Carvalho

Não, o teatro não me representa. Ele também não representa a você. Vai-se ao teatro para o exercício da representação, o que é bem diferente de se sentir representado. Representar é uma ação teatral, e uma ação que ocorre em público, para benefício de algo que se estabelece em parceria pública. O tal do sentir-se representado, como já se pode presumir, não carrega ação teatral nenhuma – é um sentimento -, e um sentimento que basta para consigo mesmo, para aquele que se sente representado: algo satisfatório, acalentador, Ufa! Que gostoso me encontrar comigo mesmo, ou com os meus! Isso, o teatro não dá conta de fazer na sua representação. Eu diria que esse sentimento que deturpa o sentido público e ético do teatro já nasce pronto como uma ferramenta emocional e terapêutica para a satisfação daquele ser individual que precisa, de alguma forma, olhar para o espelho e se encontrar ali, diante dele. Vejo-me, Eureca! Teatro não é um espelho que se volta para você em um convite para que você se sinta espelhado. Em geral é o inverso disso: é um baita espelho de imagens assustadoramente diferentes daquela que costumamos ver quando passamos a pasta de dentes na escova diante do nosso espelho privado. O teatro bota o espelho na sua frente, e você, não se vê! É assustador, não acalentador, reconfortante! Teatro é uma tela repleta de imagens contraditórias, desconexas, de figuras que, por mais realistas que sejam, não se encaixam na moldura particular que carregamos nessa identidade que acostumamos a defender, ou procurar. É um local de implosão das identidades e, sobretudo, de função contrária a essa de reafirmar – ou descobrir – a razão de sermos o que somos. Teatro é um problema, não uma solução. Soluções dessa espécie são buscadas na alçada do assistencialismo social, e nada mais contrário daquilo que é o teatro do que uma grande aldeia de assistentes sociais prontos para sanar qualquer tipo de demanda que levamos até ele. Teatro não é útil. Sua monumental necessidade e importância está justamente aí: na sua mais fulgurante inutilidade.

Não, teatro não me representa, e também não representa a você. Ele é maior do que eu, maior do que você… E quando representamos uma personagem há uma distância homérica entre essa abstração chamada personagem e o ator que o representa, porque é justamente esse intervalo de ausência de preenchimento que faz do teatro um território assombrosamente peculiar. É um território de intervalos, de frestas, de fissuras… Ninguém preenche nada no teatro, ninguém se preenche no teatro. Duvido sempre de quem sai de uma excelente peça de teatro como se tivesse feito uma refeição – satisfeito, de barriga cheia, arrotando adjetivos como quem enfiou goela abaixo um banquete dos Deuses. Um ator que chega bem ao teatro para fazer uma peça de teatro, e termina bem depois de fazer uma peça de teatro? Eu também desconfio. A meu ver, teatro é um baita problema que exige cada milímetro de energia para superá-lo – e essa superação, aí sim, é algo absolutamente interessante e recompensador… Mas muito diferente de algo que nos deixa “bem” conosco.

A regra no teatro é produzir buracos, movimentar placas tectônicas, desconjuntar os eixos, revirar o estômago ao invés de lamber os beiços. Isso tudo envolve ação, a ação de representar e não o sentimento de se sentir representado.

Dito tudo isto, é claro que o teatro nos representa – é uma grande gincana humana o teatro, que fala do humano – portanto nós estamos ali, no teatro, o tempo inteiro. Somo nós que estamos ali, não extraterrestres. Hamlet sou eu, Hamlet é você. Mas isso é a premissa básica, ou a conclusão de tudo, não o modus operandi da coisa. E essa conexão implícita é também particular, não necessita de maiores deliberações – está lá, seremos sempre nós o assunto do teatro. Mas no instante em que a cortina sobe é preciso arregimentar tensões para atravessar um deserto imenso, e essas mesmas tensões musculares cabem ao espectador, que é parte integrante da travessia. E tudo isso é prazeroso, só que pensar e agir demanda esforço. Assim o mecanismo pode operar coletivamente e publicamente. Do contrário, todos munidos da nossa ânsia e certeza de nos sentirmos bem, de nos sentirmos representados, e nada tem movimento em meio a essa aldeia gigantesca de gente sensível, carente de alguma espécie de antídoto para a doença que a sociedade nos faz padecer. Teatro não é terapia. Cuide-se bem antes de ir ao teatro, porque o seu problema definitivamente não interessa ao teatro representar.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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