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#SHAKESPEARE… E O ATOR COM PROBLEMAS

Coluna Por Chico Carvalho

Vou contar para vocês uma cena que, para mim, traduz com brilhantismo o que é essa coisa de ser ator – ou o que deveria ser essa coisa de “ser ator”. A cena dura pouquíssimos minutos e é uma das cenas do filme “Shakespeare Apaixonado”, um recorte parcialmente biográfico de Shakespeare e seu tempo. Estamos dentro do Teatro The Globe, em Londres, antes do início de Romeu e Julieta. É a estreia da tragédia dos dois jovens amantes. O Teatro está lotado. A rainha está nos camarotes. O povão disputa espaço de pé, colado ao palco. Nas frisas, gente abastada aguarda qual será dessa vez a intriga a ser apresentada. Terceiro sinal. Tensão no ar. Todos ansiosos para a entrada dos atores. A câmera vai para os bastidores e lá está o intérprete que deverá primeiro pisar o tablado para narrar um resumo da história de hostilidades entre Montéquios e Capuletos, e abrir espaço para as personagens da trama. Esse ator é uma espécie de prólogo. Uma responsabilidade e tanto. Não se pode errar.

Esse ator que fará o papel de Prólogo está desesperado, gagueja feito vara verde tentando repetir suas falas, visivelmente atabalhoado diante do mar de gente que se afigura do outro lado. Ele tenta fugir e ir embora. Ameaça sair correndo para evitar a catástrofe iminente. Shakespeare, o próprio, está na coxia e dá um tapão na própria testa prevendo o prejuízo que decorrerá do fracasso. Pois eis que rapidamente um produtor apanha o medroso pelos ombros, o chacoalha e o empurra para dentro do palco. Silêncio total. A plateia, que até então parecia uma torcida de time de futebol, fica muda, imóvel, mirando o sujeito vestido de Prólogo. O pobre ator caminha cambaleante até a beirada do proscênio, dá um jeito de fincar os dois pés no chão, abre a boca sob a atenção estática dos espectadores… e diz o que tinha para dizer de forma deslumbrante, clara e cristalina. Alívio geral. E a peça segue, conquistando a todos no teatro. FIM da cena.

Qual é o problema em questão aí? Todos. Só há problemas: o ator tem um problema que não sabe se saberá resolver. A plateia não sabe se quem irá aparecer ali merecerá seu aplauso, a história é um problema porque nunca foi contada, de modo que ninguém sabe do seu alcance. Tudo é estranho, tudo está em aberto, tudo, absolutamente tudo é problemático. E, no entanto, tudo se resolve. E o problema se resolve justamente porque há problema. Mudando para nós aqui, hoje, nestes tempos de fofurices de emojis das redes sociais, parece-me que a gente se afoga cada vez mais num poço sem fim de emoções quentinhas de acolhimento. Todos se querem bem. Todos se conhecem. Todos são queridos uns dos outros. Nada é estrangeiro nem problemático, tudo é um enorme convescote de compartilhamento de afetos entre camaradas. Haja afetos! O que nós temos para contar? Resta alguma coisa para contar que não seja uma experiência pessoal?

Para nós daqui, de hoje, tudo está dado, somente a espera do caloroso abraço fraterno daqueles que se amam. Num cenário como esse é impossível haver teatro. Não à toa que as coisas deixam de ser teatro e viram performance. Na performance o ator se expõe, não há disfarce nenhum, o personagem é o “si próprio” em contínua análise terapêutica. Não há necessidade de disfarces uma vez que história nenhuma existe para ser contada. Há tão somente um rasgo pessoal e íntimo de experiências afetuosas. Nesse pote imenso de melado afetuoso morremos todos juntos. Morremos e matamos o teatro, ninguém mais preparado para problema nenhum, história nenhuma, nenhum tônus possível de ser experimentado publicamente uma vez que agora o espaço coletivo compartilha a flacidez do coraçãozinho mole e afetado de amor. Haja afeto!

Pois eu quero é problema. Devolvam-me o problema! Seja como espectador ou ator, eu quero é encarar um precipício vertiginoso de problemas assim como aquele ator que representou o Prólogo de Romeu e Julieta e que quase não entrou em cena com medo de seu fracasso. Eu quero é frequentar o medo do fracasso, e fracassar, se possível. Melhor fracassar que ser acolhido pela aldeia de queridos que viramos todos. Se a ideia é estar vivo, então me deem motivos para ter duas panturrilhas que me sustentem de pé ao invés de me oferecer uma caixinha de lencinhos para enxugar as lágrimas!… Enterrem esses malditos emojis ❤️❤️❤️ e devolvam-me os problemas! Que tempos pavorosamente rendidos ao conforto da fofurice que nunca se bota em desequilíbrio diante de algo desconhecido e misterioso!

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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