Entre os diversos clichês em torno das artes cênicas está aquele que define o teatro como um retrato do seu tempo. Com base nesta ideia, o espetáculo Sueño, escrito e dirigido por Newton Moreno, que voltou ao cartaz no Itaú Cultural no dia 31, é bem diferente daquele lançado em novembro de 2021 na área externa do Teatro João Caetano, em São Paulo. Na época, em pleno processo de retomada dos palcos na pandemia, em um país que já enterrara mais de 600 mil mortes em decorrência da Covid-19, o cenário era outro, bem mais angustiante e desafiador – o que afetava diretamente a obra e os artistas envolvidos.
Não importa se esse tempo definidor seja de dois anos, dois séculos ou aquele lá da Grécia Antiga, há mais de dois mil anos. No caso de Sueño, trata-se de um par de anos em que o país respira mais aliviado depois do massacre pandêmico e do fim do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro e deposita esperanças no presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou ao poder depois da eleição de outubro de 2022. Logo, o que se vê na atual temporada é um enfraquecimento da força política da peça em detrimento a uma comunicação mais aberta e natural com o público.
Livremente inspirado em Sonho de uma Noite de Verão, comédia de William Shakespeare, o argumento de Sueño percorre trilhas bem mais densas e dramáticas que talvez o bardo inglês imaginasse, fortemente sublinhadas no texto de Moreno e na direção da montagem original. Hoje, Sueño é outro, nem para o bem e nem para o mal. Está mais tragicômico, principalmente no primeiro ato, quando arranca gargalhadas da plateia impensáveis no passado e trocou bastante da ironia por um humor que, se existia lá atrás, passava despercebido porque não era hora de dar risadas. Enfim, contrastes com os novos tempos – mesmo diante de uma história cheia de peso trágico.
Em 1973, em Santigo do Chile, uma companhia de teatro ensaia Sonho de uma Noite de Verão, a tal peça shakespeariana, com a intenção induzir o público a usar a imaginação em meio ao sofrimento cotidiano. O diretor Vine e sua mulher, a atriz Laura (interpretados por José Roberto Jardim e Michelle Boesche), entretanto, são obrigados a fugir do país logo depois da tomada do poder pelo general Augusto Pinochet. Parceiros na vida e na arte, os dois, trilharam caminhos diferentes na militância. Ele, romântico, insistiu em brigar munido de poesia, enquanto ela, que está grávida, reforça a postura radical e aderiu à luta armada.
Laura vem de uma família rica e conectada ao poder. Sua mãe (papel de Sandra Corveloni, em substituição a Denise Weinberg), representante de uma elite decadente, destrata o genro chamando-o de “comunista” e se aproveita da proximidade com um militar (representado por Leopoldo Pacheco), que deseja Laura desde quando ela era uma menina. Durante o exílio, Vine idealiza o dia em que poderá, finalmente, voltar ao seu país e encenar o espetáculo interrompido pela repressão. Porém, nos anos de 1990, em Santiago, depois da redemocratização, o diretor entende que, em meio a tanta destruição, não será simples negar os ecos do autoritarismo e, além da ambição artística, precisa localizar o paradeiro da filha.
Em um primeiro momento, talvez se pense que Newton Moreno, dramaturgo pernambucano, que, nas últimas duas décadas, consagrou seu olhar para o povo nordestino em peças como Agreste, As Centenárias, Memória da Cana e Maria do Caritó tenha se distanciado do Brasil e seus problemas tão gritantes. Não, de jeito nenhum. Sueño é uma peça de inúmeras camadas e, nas tantas metáforas, o autor não trata só de conflitos do Chile ou das ditaduras que, entre as décadas de 1960 e 1980, assolaram a América Latina. Moreno fala do Brasil que também enfrentou os militares entre 1964 e 1984 e das angústias recentes, como o sucateamento cultural e as famílias dilaceradas pela pandemia.
Em referência à metalinguagem, as cenas de Sonho de uma Noite de Verão mostradas dentro de Sueño parecem ter se sobressaído depois de dois anos. Desta maneira, os trabalhos do ator Paulo de Pontes, como um estressado Shakespeare e o personagem Píramo da peça inglesa, e da atriz Simone Evaristo, principalmente como a feiticeira da floresta, chamam mais atenção que no original. Como naturalmente carrega uma personalidade distinta a de Denise Weinberg, Sandra Corveloni joga menos peso dramático na mãe alcoólatra da protagonista, reforçando o lado fútil e leviano do papel, e contribui positivamente para Titânia de Sonho de uma Noite de Verão. Sua Rainha Elisabeth I, nas cenas com Shakespeare, no começo do espetáculo, passam quase despercebidas. No quesito versatilidade quem melhor toma partidos dos tipos é Leopoldo Pacheco, especialmente na pele do militar torturador e do gerente da construtora que deseja comprar o terreno do teatro de Vine – dois vilões em momentos distintos da história criada por Moreno.
Intérprete de Vine, José Roberto Jardim estava ausente da atuação há oito anos, dedicando-se apenas à direção, quando estreou Sueño em 2021. Sua performance lá era nitidamente rígida em contraste ao perfil sonhador do personagem, principalmente no primeiro ato. Agora, Jardim aparece mais à vontade no começo, talvez até flexível, levando Vine aos poucos a uma linha ampla entre a frustração do artista e o desencanto do cidadão.
A outra protagonista, Michelle Boesche, é que se mostra mais concentrada e fiel às suas personagens, principalmente quando interpreta Laura e, depois, Norma, a filha do casal, nos anos de 1990. Aqui, a atriz aparece como uma economista pragmática, funcionária de uma empresa da construção civil e movida por metas, que resvala dramaturgicamente na caricatura, mas que, graças à sua presença forte, Michelle consegue habilmente estabelecer um contraste verossímil com a Laura da fase inicial.
Para evocar mais um clichê do teatro, cada apresentação é única e rende um espetáculo diferente. Logo, não é justo comparar o Sueño de 2021 com o Sueño de 2023, mas é inegável que, para quem viu a montagem há dois anos, fica a sensação de que a indignação da época gerava mais impacto e comovia o público. Tudo bem. Como diz a letra da canção da abertura do espetáculo, executada, assim como toda a trilha, ao vivo por Gregory Sliver, “ou se vive por inteiro ou se está em cativeiro”. Logo, o teatro é livre para sofrer transformações e os sonhos, que, afinal, sonhos são, também.
Foto: João Caldas Fº
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