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Vanessa Petroncari Resgata Memórias Femininas e Tradições Ancestrais no Solo Fuxicos

Coluna Por Natália Beukers

Já ouviu a expressão fuxicos? Sabe o que significa? A partir de solo altamente pessoal, a atriz Vanessa Petroncari traz essas e muitas outras respostas. A peça Fuxicos – que está em suas últimas semanas de apresentação – tem como mote a cultura da confecção de fuxicos, artesanato feito por mulheres da roça, com sobras de tecidos, em ocasiões em que se reuniam para costurar e “fuxicar” sobre a vida.

Escrito em 2020 pela própria atriz, e posteriormente assessorado pelo dramaturgo e ator Kiko Marques, o texto conta a história de uma avó e sua neta, que costuram histórias à margem de um rio. Por entre lembranças e atritos, os trabalhos manuais, decerto ancestrais, dão passagem a histórias de antigas mulheres.

Em entrevista exclusiva ao Infoteatro, Petroncari contou um pouco mais sobre o projeto. Confiram a seguir o que fuxicamos:

 Como as memórias femininas e as tradições ancestrais influenciaram na criação do espetáculo e qual a importância de resgatar essas histórias?

VANESSA PETRONCARI: As tradições ancestrais de se confeccionar artesanatos (crochê, tricô, bordados) foram as grandes disparadoras desse processo criativo que culminou no espetáculo teatral Fuxicos. Aprendi essas manualidades ainda na infância e adolescência, com minhas avós, que por sua vez, as aprenderam de outras mulheres mais antigas. Esse saber fazer artesanal é passado de geração em geração desde que o mundo é mundo, o que muda são as especificidades de cada cultura. Como venho de um contexto muito ligado ao campo e à cultura caipira, o que aprendi com minhas ancestrais foi o crochê, o bordado, a costura e a fazer fuxicos. Essa pecinha de artesanato que ganhou esse nome em alusão ao “fuxico da vida dos outros”, que as mulheres faziam quando reuniam-se para fazer tais trabalhos, me encantou desde a primeira vez que a vi. Pedi para minha avó me ensinar. A partir daí, nunca mais parei de fazer fuxicos. O mais maravilhoso é que fui descobrindo todo o universo simbólico que essa pecinha representa: gosto de pensar que em cada fuxiquinho, há uma história costurada. Nas ocasiões em que mulheres se reúnem para fazer trabalhos manuais, não são fuxicos sobre a vida alheia que são feitos, isso foi a imagem que o patriarcado tentou contar para nós. Nessas ocasiões, nós falamos sobre nós mesmas: contamos nossas próprias histórias e as transmitimos para as futuras gerações, assim como a sabedoria de cura e resistência que as mulheres, inteligentemente, desenvolvem há muito tempo. Resgatar essas memórias é importante para dizermos a nós mesmas, e ao mundo, que temos voz, que sabemos contar nossas próprias histórias e que não vamos cair nem parar de “nos contar”.

 Como foi o processo de pesquisa para coletar histórias e peças artesanais feitas por mulheres em contextos de transformações, adoecimentos e resistência?

VP: Comecei a puxar esse fio a partir de mim: o que gostaria de contar sobre minha vida? Acabei me deparando com uma história de rompimento e ressignificação de minhas expectativas de vida enquanto mulher. Então comecei a olhar para as mulheres da família e perguntar: quem foram essas mulheres? O que aconteceu na vida delas? O que elas sentiram? Curiosamente, fui detectando processos de adoecimentos (psíquicos e físicos) que se repetiam (e que, graças à terapia e à conscientização desses, a gente vai conseguindo romper). Sempre gostei muito de escrever, então escrevia sobre essas sensações e impressões, incentivada por minha terapeuta e pela Alejandra Sampaio, diretora do espetáculo. A partir disso, entendi que precisava conversar com outras mulheres também para o material não ficar “ensimesmado”,  então fui conversando com mulheres que sabia que tinham “muitas histórias para contar”, sobretudo em relação a processos de rompimento e mudanças de rota na vida. Ao mesmo tempo, fui angariando peças de artesanato e coisas que haviam sobrado de minhas avós, minha única bisavó que conheci viva, minha mãe… tudo que pudesse compor um pequeno acervo afetivo-artesanal. Tudo foi, aos poucos, para a cena, através de improvisações e criações de cena que mostrava para a Alejandra. Ela via e então conversávamos bastante. Depois chegou o Kiko Marques, para me auxiliar no quebra-cabeça da dramaturgia a partir do material cênico e dos escritos que já tinha. Assim, fomos desenhando a dramaturgia e erguendo as cenas. Ah! E durante todos esses anos, me nutri principalmente de materiais com tônica feminina: livros escritos por mulheres, exposições, filmes, músicas… tudo isso foi compondo um grande acervo que foi minha fonte para a criação de Fuxicos.

Como sua vivência pessoal, enquanto neta de lavradores de café do interior de São Paulo, contribuiu para o desenvolvimento da dramaturgia do espetáculo?

VP: Primeiro com as memórias, sobretudo de minha infância. Embora não tenha crescido no sítio de minha família, como meus pais, venho de uma cidade pequena, São Manuel, em que o espaço urbano é muito próximo e ligado à zona rural, seja pelo tamanho da cidade, seja pela história socioeconômica de seus habitantes. Até hoje tenho família que mora no sítio, visito com frequência. Dos dois lados de minha família, materno e paterno, meus avós eram gente de sítio que trabalhavam no café. Assim, cresci indo semanalmente ao sítio, brincando embaixo de pés de café e nos terreiros de secagem de café, nas tulhas, andando na carreta do trator – adorava essa parte! – subindo em árvore, pegando bicho de pé, brincado com carrapicho, mamona, sabugo de milho… com o pé bem na terra. Parece coisa boba, mas hoje vejo como essas vivências, de minha infância, foram muito saudáveis e gostosas. Meus pais trabalhavam fora, então ficava muito com meus avós, indo para o sítio. E dessa proximidade com minhas avós, nasceu a possibilidade de aprender artesanatos, fazer bolo para tomar com café e prosear, sem pressa, com a vizinhança. Ao mesmo tempo, também me gerou questionamentos acerca do modelo de vida patriarcal de nossa sociedade, em que os trabalhos domésticos eram responsabilidade única e exclusiva das mulheres… me gerou algumas revoltas, algumas tristezas… tudo isso foi maturando dentro de mim até que conseguisse escrever e levantar esse trabalho. Fuxicos tem muito da minha paisagem interior da infância e adolescência.

Qual mensagem espera transmitir ao público com a peça e como vê o papel do teatro em abordar narrativas femininas?

VP: É difícil falar em “uma mensagem” que queira passar com a peça… Meu desejo é sensibilizar as pessoas para a força das narrativas, para a importância e potência dos encontros presenciais e as trocas afetivas. O teatro é uma arte potente porque, em si, traz o pressuposto do encontro presencial para se contar uma história. Uma peça é uma história que os atores contam para o público. O mais lindo do teatro é que existem infinitas possibilidades de se contar uma história, por isso que o teatro nunca vai acabar: a humanidade necessita contar suas histórias. Meu desejo é problematizar as visões que são criadas em cima das mulheres, desde o “sexo frágil” à “supermulher” que dá conta de tudo. Quero falar dos adoecimentos, mas também sobre as possibilidades de cura afetivas que encontramos e da resistência que as mulheres sempre tiveram frente a uma história patriarcal que quis encerrá-las dentro de casa e minimizar a importância de seus feitos. Sempre tivemos mulheres operando grandes feitos na História, a questão é: quem contará tais histórias? É isso que pretendo com Fuxicos.

 

SERVIÇOS

1º a 30 de julho, aos sábados, às 20h; e aos domingos, às 19h

Associação Zona Franca – Rua Almirante Marques Leão, 378, Bela Vista

Ingressos: grátis, distribuídos uma hora antes de cada sessão

Classificação: 10 anos

Duração: 60 minutos

Capacidade: 35 lugares

Informações: (19) 98328-1058

          Foto: Pedro Dutra

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Sobre
Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz, criadora do Infoteatro e colaboradora de Cultura da Vogue Brasil, tendo escrito mais de 50 textos até então. Formada em Direito pela PUC-SP (2020), começou a estudar teatro aos 10 anos de idade, formando-se como atriz em 2017. Estudou, de 2017 a 2021, com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos do grupo: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”. Foi assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. A partir da criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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