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Foto: Priscila Prade
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Gabriela Duarte assume o direito de ser louca na desconstrução de “O Papel de Parede Amarelo e Eu”

Dirigida por Alessandra Maestrini e Denise Stoklos, a atriz faz salto kamikaze em solo que, mesmo com aterrissagem pacífica, é experiência perturbadora

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Na novela Passione, escrita por Silvio de Abreu para a Rede Globo em 2010, Gabriela Duarte subverteu a própria imagem como Jéssica, a ciumenta mulher do italiano Berillo (papel de Bruno Gagliasso). A atriz revelou um insuspeito talento cômico e surpreendeu aqueles que não a imaginavam além das mocinhas dominantes em seu currículo há duas décadas.

Nada mais estimulante para um artista que a motivação de gerar impacto e, quando o público o abraça, um ciclo se completa e pode ser irreversível, pelo menos durante a apresentação daquela obra. É um momento desta proporção que Gabriela, aos 51 anos, atravessa no monólogo O Papel de Parede Amarelo e Eu, dirigido por Alessandra Maestrini e Denise Stoklos, cartaz do Teatro Estúdio, em São Paulo. Por 60 minutos, a plateia se vê diante de inúmeras e inusitadas sensações, entre as quais a temida indiferença não faz parte.

Publicado em 1892, O Papel de Parede Amarelo é um conto da escritora estadunidense Charlotte Perkins Gilman (1860-1935), apontado como um dos primeiros da literatura feminista. A história trata de fragilidades emocionais, obsessões e tentativas de apagamento através de uma mulher isolada pelo marido em uma fazenda para relaxar e se livrar dos fantasmas que a atormentam. Tudo no bucólico cenário parece propício ao descanso até a personagem perceber que seu quarto, com as janelas gradeadas, parece uma cela, e as paredes forradas de amarelo mais lhe angustiam que transmitem aconchego.

Foto: Priscila Prade

Foi este texto que caiu nas mãos de Gabriela quando ela buscava um projeto teatral. Em sua ambição criativa, a atriz tentou levantar a peça por mais de três anos, trocou ideias firmes em estágios diferentes com duas outras diretoras – Clarice Niskier e Clara Carvalho – e chegou a descartar uma dramaturgia encomendada. Nesta adaptação, a ficção de Charlotte ganharia respiros diante de depoimentos de Gabriela e, insatisfeita com o teor considerado invasivo, a protagonista entendeu que melhor seria levar ao palco o conto em si, permanecendo fiel às palavras do original.

Caso se concretizasse, aquele poderia ter sido apenas um monólogo entre tantos sobre o universo feminino – até porque as duas diretoras talentosas, Clarice e Clara, certamente realizariam bons trabalhos que colocariam a atriz em posições de destaque. Mas quis o destino que estes dois primeiros contatos não avançassem e, depois de completar 50 anos de idade, Gabriela entendeu que lhe cabia o direito de ser ou, pelo menos, parecer louca.

É isto o que muita gente deve se perguntar durante O Papel de Parede Amarelo e Eu. Gabriela enlouqueceu? Ela sabe que está pagando mico? Não, Gabriela não enlouqueceu e tampouco paga algum mico. O que faz o espetáculo saudavelmente estranho, inusitado é o reflexo desta inquietação aliada a uma improvável dupla ligada à experimentação.

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Sob o comando das diretoras Alessandra Maestrini e Denise Stoklos, a artista subverte a si mesma – e não só a própria imagem –em um trabalho essencialmente performático. O Papel de Parede Amarelo e Eu é um salto kamikaze com aterrissagem pacífica, uma experiência perturbadora, que de tão contemporânea até parece antiquada para quem vasculhar influências na sua concepção.

A montagem dialoga com uma atmosfera típica do diretor estadunidense Bob Wilson. Tanto a plasticidade visual quanto as máscaras clownescas e as coreografias imperfeitamente desenhadas remetem ao encenador que redefiniu a vanguarda nos anos de 1970. Algumas vezes, lembra um dos tantos solos protagonizados por Denise Stoklos em áureas décadas passadas e, em outras, tem um quê do deboche das dramaturgias visuais de Gerald Thomas, uma sacada evidente de Alessandra Maestrini.

Pode-se falar o que quiser de O Papel de Parede Amarelo e Eu, mas trata-se de um espetáculo diferente de tudo o que se vê comumente em cartaz, ainda mais tendo uma protagonista formatada pelas telenovelas. Em primeiro lugar, Alessandra e Denise calaram a boca de Gabriela, quer dizer, na maior parte da montagem, pouco se ouve em tempo real a voz da atriz. O que poderia parecer um disparate resulta em uma acertada escolha para retratar a personagem impedida de exercer o direito de fala e qualquer outra associação pode ser bem-vinda.

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Mais de 90% do texto é dado em áudios que representam um fluxo ininterrupto de pensamentos da mulher confinada pelo marido. Enquanto isso, Gabriela dubla, gesticula, deixa o som se espalhar sem que haja qualquer dispersão.

Em uma solução mais convencional, a protagonista se lamentaria, choraria, falaria sem parar enquanto estivesse presa no quarto de paredes amarelas. Só que, como Denise sabe bem, o corpo fala e, assim, quem fala é o corpo de Gabriela em um trabalho que faz das palavras um complemento às expressões físicas.

Gabriela se jogou porque sabia que saltaria de um despenhadeiro com uma infalível rede de proteção. Pelo menos, durante o processo. A paranaense Denise Stoklos trabalhou com os diretores Ademar Guerra (1933-1993), Antunes Filho (1929-2019) e Fauzi Arap (1938-2013) e, no fim da década de 1970, partiu para a Europa, onde, principalmente na Inglaterra, moldou seu estilo em cursos de mímica, acrobacia e performance. De volta ao Brasil, em 1982, desenvolveu o seu chamado teatro essencial, que geraria espetáculos antológicos como Elis Regina, Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico e Mary Stuart.

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Com uma assinatura consolidada, Denise provou que é possível desenvolver um teatro físico conectado a uma sólida dramaturgia e recebeu aplausos da crítica e do público. Por isso, a primeira provocação feita a Gabriela foi começar os trabalhos pela criação de uma partitura corporal para depois buscar o apoio do texto.

Com uma profícua carreira entre os musicais e as comédias, a atriz e cantora Alessandra Maestrini enxergou o absurdo vivido pela personagem de O Papel de Parede Amarelo e Eu e abriu brechas para uma leitura tragicômica. A artista marcou presença nos espetáculos Os Miseráveis, A Ópera do Malandro, 7 – O Musical e o recente Kafka e a Boneca Viajante e, mesmo no trabalho que a popularizou como comediante na televisão, o sitcom Toma Lá, Dá Ca, da Globo, chamava atenção por uma partitura corporal capaz de aproximar a personagem, a empregada Bozena, de uma marionete ou um robô.

No teatro, Gabriela realizou uma outra investida potente, em 2014, com a peça Através de um Espelho, drama adaptado do filme homônimo de Ingmar Bergman, sob a direção de Ulysses Cruz. Karin, sua personagem, também vivia no limite da estabilidade emocional e reencontrava a família depois da internação em uma clínica psiquiátrica.

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A atriz vinha de uma comédia açucarada, A Garota do Adeus, dirigida por Elias Andreato em 2012 e, na sequência, participou de uma desbotada encenação de Perfume de Mulher, realizada por Walter Lima Jr. em 2019, com base no romance de Giovanni Arpino que gerou o filme celebrizado pelo ator Al Pacino.

É no teatro que o intérprete costuma assumir as rédeas de sua carreira, e Gabriela demorou ou respeitou o seu tempo para idealizar um projeto que quebrasse qualquer expectativa relacionada a sua imagem. O privilégio evidente e inegável de ser filha de Regina Duarte, a mais popular das atrizes da televisão brasileira em todos os tempos, lhe manteve portas abertas por décadas. Só que, além da semelhança física e aparente meiguice, Gabriela foi constantemente associada à sua mãe.

No remake da novela Irmãos Coragem (1995), ela defendeu o papel vivido por Regina em 1970. Na minissérie Chiquinha Gonzaga (1999), as duas interpretaram a compositora em gerações diferentes, e na novela Por Amor (1997), um estrondoso sucesso, a então jovem atriz representou a filha mimada da própria mãe em um belo e pouco reconhecido trabalho da sua trajetória. Nada, mas nada mesmo é por acaso.

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Mesmo que nada em O Papel de Parede e Eu lembre Regina Duarte como atriz, a figura materna inevitavelmente opressora se mostra presente como metáfora para as angústias da personagem confinada. O cenário criado por Marcia Moon não é só um quarto, é um palco transformado em prisão. O figurino de Leandro Castro serve de ponte para ironias, como os braços que se desnudam, e a luz, belíssima, desenhada por Cesar Pivetti, é companheira e algoz da protagonista, pode ser envolvente e sombria.

Muita gente ainda pode ir ao teatro certa de que verá um novo trabalho da eterna filha de Regina. Depois de dez minutos de peça, entretanto, encontrará uma intérprete na permanente desconstrução de um rótulo que, no início, foi conveniente, mas, com o tempo, trouxe mais angústia que conforto ou estimulou novos desafios.

“É impossível atender às expectativas de todo o mundo”, disse a atriz ao jornalista que vos escreve, poucos dias antes da estreia. “Se as pessoas vão gostar ou não, não é uma preocupação minha, porque estou feliz, realizada e faço uma coisa que nunca tinha feito.”

Gabriela pode até ter tentado lutar, principalmente depois de um tempo, para assumir as rédeas da carreira, mas muitos se fingiram de surdos. O que faz agora a atriz? Grita, como uma louca, descolando e destruindo o papel de parede amarelo e, desta vez, na marra, alguém há de escutá-la.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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