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A magia de um livro engrandecida pela força do teatro

‘A História Sem Fim’, peça para jovens de todas as idades e capitaneada por Carla Candiotto nas tardes do Sesi SP, é uma feliz reunião de talentos do teatro paulistano, nas mais variadas áreas de criação, e tudo em nome de se contar um boa história sobre o poder da imaginação

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Você está lendo um livro e sentindo o tempo todo, durante a leitura, que os personagens da ficção perceberam  a sua presença e parecem querer puxar você para dentro das páginas, para ajudá-los mais de perto em suas questões existenciais ou práticas. Isso acontece mesmo na trama do espetáculo A História Sem Fim, em cartaz – de graça – até o fim de junho no Teatro do Sesi, na Avenida Paulista. Enquanto via essa maravilha sendo perpetrada no palco, fiquei o tempo todo imaginando como seria estupendo se, em cada sessão, ao menos uma criança se fascinasse por essa possiblidade fantasiosa e corresse para casa para ler um livro, na esperança de literalmente mergulhar dentro dele, como o protagonista da peça.  Que papel fenomenal tem esse espetáculo. O bom teatro a serviço de resgatar para as novas gerações o valor de ler. Melhor: a magia de ler.

Já seria motivo suficiente para valer a pena ver a peça, mas A História Sem Fim, baseada em livro do alemão Michael Ende, que virou filme antológico por Wolfgang Petersen, é muito mais do que só isso. Muito mais. Ao final, me lembrei de um verso de Circo Místico, canção de Chico Buarque e Edu Lobo: “Chove tanta flor que, sem refletir, um ardoroso espectador vira colibri.” Nessa versão teatral de A História Sem Fim, idealizada, criada, escrita e dirigida por Carla Candiotto, chove tanto talento, que, sem refletir, eu, um ardoroso espectador, virei passarinho e saí voando do teatro. Não sei se até agora pousei.

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Nesse estado embriagado em que fiquei, e ainda estou, quando tamanha subjetividade me acomete, escrever um texto opinativo, pulando de ardoroso espectador para crítico veterano, é tarefa que me leva paradoxalmente a perseguir o oposto na abordagem. Ajeito as lentes e ponho o foco na objetividade. Para conseguir isso, meu jeito, quase sempre infalível, é ‘esquematizar’ a crítica, escrever em tópicos diretos e racionais. Vamos lá.

A adaptação. Criado por Carla em parceria com Victor Mendes, também ator da peça (com espaço ainda para a interferência estimulada de toda a equipe durante os ensaios), o texto adaptado consegue a fluência necessária para que a trama se desenvolva harmoniosamente, alternando aventura de ação com introspecções filosóficas – mesclando realidade e fantasia, que é, afinal, a dicotomia propulsora da obra. Parte-se de um livro com quase 400 páginas para um espetáculo com 80 minutos. Personagens ficaram de fora? Sim. Mas nada que tenha atrapalhado a coerência da fábula contada. Cito um exemplo da louvável capacidade de síntese da dupla de adaptadores: com duração (salvo engano) de cerca de 1 minuto, justamente o minuto inicial da peça, conta-se – coreograficamente, aliás – que o menino protagonista perdeu a mãe para uma doença galopante. Pronto, um minuto bastou para contextualizar qual será a motivação do protagonista ao longo de toda a peça: saudade da mãe morta. Com direito a um comovente abraço do menino no pai viúvo. Que belo extrato condensado.

Teatro é ritual. Repare que não há nenhuma cena que não comece plasticamente bela, ritualisticamente bem-acabada. Na direção de Carla Candiotto, não houve espaço para o desleixo, para a displicência. Cada entrada dos atores, cada início de cena, nos arrebata. Há um cuidado raro em ritualizar cada passo, cada despontar de um novo personagem. As composições cênicas, por assim dizer, foram muito bem pensadas e tramadas por uma equipe afinadíssima em fazer o conjunto funcionar: luz, figurino, direção de movimento, cenografia, trilha, elenco. Os conjuntos estéticos que caracterizam cena a cena engrandecem a narrativa, num crescendo ininterrupto que nos tira o fôlego.  Cito exemplos de entradas que mais me impactaram: três pessoas chegando ao porto cobertas de sacos inflados (que efeito lindo quando elas se movimentam!), a entrada da torre no palco (uma harmonização perfeita com a luz faz parecer que tudo é desenho no telão, e não uma torre real) e, ao final, a entrada do “exército” (poucos atores fazem parecer um grupo numeroso, que impactante!).

A surpresa da presença do humor. Outro aspecto que você vai perceber nesta adaptação é que, a despeito de toda a ‘solenidade’ de se falar de um tema como o fim do mundo, em que o Nada ameaça violentamente a Fantasia,  o espetáculo é todo perpassado por um humor agradável, delicioso, inteligente. Eu não esperava e fiquei positivamente surpreso. Em quase todas as cenas, há momentos divertidos. Essa escolha para a encenação foi sagaz. Leveza é fundamental. Referência a ‘dancinhas’ do tipo Tik Tok  marcam presença, acredita? É hilária a hora em que o herói Atreiú (Victor Mendes), para conseguir  conversar com duas velhas Morlas (Camila Cohen e Carol Badra), tem de imitar as dancinhas das duas, que só falam cantando e dançando. Uma delícia. Não falta na peça nem mesmo o momento de trapalhada física, típica de palhaçaria, quando Ernani Sanchez (como Carlos) cai toda hora da escada, um achado simples e brilhante para o conjunto da cena e a caracterização do personagem.

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O cuidado com os temas da infância. Se no livro e no filme o momento é explícito, por que no teatro não seria? Um cavalo morrendo em cena, à vista das crianças. E daí? Qual adulto – pais, professores, coordenadores de escolas – vai ousar dizer que a criança precisa ser poupada dessa cena? O Pântano da Tristeza é essencial como uma das etapas da jornada do herói. E é impressionante ver que, na cama, o menino que está lendo o livro (Thiago Amaral, impecavelmente entregue ao protagonista Bastian Balthasar Bux) interrompe a leitura e cai no choro. A morte da mãe, a morte do cavalo… A direção interligou as dores de forma muito sensível.

Esse cuidado com o público mirim fica patente no espetáculo. Muito pertinente, nessa linha, é o momento em que o herói tenta ensinar conceitos abstratos de vida para o cavalo. É simbólico da relação dos adultos com as crianças. Audácia, por exemplo, o cavalo confunde com preguiça. Muito bom. De novo, a presença do humor, amenizando um momento sério. E há mais exemplos dessa atenção com o público-alvo.  Como esta frase do herói: “Sim, eu sou um guerreiro, mas eu sou criança.” Empatia garantida. E mais um exemplo sutil: em determinada cena, o dragão da sorte Fuchur só faz o que o herói lhe pede quando finalmente este se lembra de dizer ‘por favor’. Situação típica do cotidiano das famílias. Mais um ponto extra para a empatia na plateia.

Acertos na direção de elenco.  E por falar em sutilezas e delicadezas, há pérolas de interpretação o tempo todo, desfilando à nossa frente. Detalhes que fazem toda a diferença. Minúcias que tanto demonstram o rigor da direção com seus intérpretes escolhidos, quanto comprovam o talento inegável desses bravos artistas. Pinço aqui quatro exemplos. 1. A voz mítica adotada por Ernani Sanchez ao fazer o barqueiro-lobisomem Gmork. Que acerto, que composição. 2. Quando diz a frase “Me leve para viver!”, Thiago Amaral abre os braços, num gesto amplo extremamente tocante. Como isso melhora a cena, como acentua o sentido da frase! 3. É de arrepiar perceber que, para marcar a morte lenta do cavalo, os três manipuladores do grande boneco equino vão saindo do palco um a um, lentamente, até deixarem a estrutura inerte do boneco ao chão. Que grandeza da direção compor essa saída tão dolorida para os três atores-manipuladores, que afinal eram os portadores de vida para o  boneco. Se ele morre, os três se despedem também, um a um. Que lindo. Para se aplaudir em cena aberta. Deu vontade.  4. A opção por fazer, em várias cenas, os atores falarem perfilados e voltados de frente para a plateia, mesmo que dialogando entre si, é de um efeito narrativo brechtiano de se tirar o chapéu. Isso acentua o antinaturalismo de assumir para o público que “estamos no teatro e contando uma história para vocês”. Um recurso que sempre me emociona.

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E já que o tópico é a interpretação, impossível não elogiar as cenas de luta, marcadas por golpes de espada e bastão e muito bem coreografadas pelo diretor de movimento Roberto Alencar, depois que o elenco teve aulas regulares de Aikidô com Georgette Fadel e Ana Paula Brieda. Mais impossível ainda é não deixar registrado aqui o quanto são funcionais as trocas de cenas, graças à agilidade do elenco em sair do palco e voltar instantes depois com outro figurino, na pele de outro personagem, tudo muito rápido.

A eloquência visual de um grande projeto. Eu vivi para ver isso. Pensei bastante nessa frase durante a sessão em que estive presente. O nível técnico que o teatro para crianças chegou, em São Paulo, graças a um numeroso time de profissionais cada vez mais brilhantes, é algo que salta aos olhos em A História Sem Fim. Que eu vivi para ver. Lembro demais das primeiras e obsoletas tentativas de usar telão no palco com imagens em movimento e efeitos de videomapping. Hoje, veja essa peça no Sesi e entenda como o audiovisual pode contribuir harmoniosamente com um espetáculo teatral, sem que o teatro perca sua essência e deixe de ser teatro. O gravado e o ao-vivo em perfeita sincronia e criatividade. Quem assina a direção de vídeo é a dupla Um Cafofo, formada por André Grynwask  e Pri Argoud. Eles dizem no programa que usaram animação 2D, animação 3D, inteligência artificial, matte painting (pinturas que criam a ilusão de um grandioso cenário) e motion graphics (grafismos e formas em movimento). O que importa é que ficou nota mil. Principalmente quando tudo isso é casado com a iluminação de um veterano da área, Wagner Freire, que mais uma vez criou volumes, ampliou efeitos, estabeleceu climas, acendeu e apagou vidas. Não dou spoiler, mas o que seria da cena final sem o talento resplandecente de Wagner Freire?

A cenografia (mais do que isso, a direção de arte) é de outro parceiro constante de Carla Candiotto, Marco Lima, que transformou o palco em um cais destruído, um porto/portal cinzento. A cor só começa a voltar quando o menino Bastian, órfão de mãe, torna a sentir vontade de brincar e de existir. As engenhocas cênicas, por assim dizer, que Marco Lima traz à tona, na desafiadora tarefa de renovar um clássico, são de uma eloquência inesquecível – ainda mais porque se trata de um clássico que tem na bagagem a histórica renovação causada no audiovisual no século passado. Missão cumprida com sucesso.

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Os figurinos de Fabio Namatame bailam pelos ‘salões’ de inspiração oriental, da China à Arábia, da Índia ao Egito. E, claro, o Japão, lindamente presente nas estamparias. Curioso ver como um saruel e uma camisa vão ganhando camadas e volumes. O básico acrescido de boa informação a serviço da história. E embalando literalmente todas as criações desse time para lá de azeitado está a trilha sonora do diretor musical Marcelo Pellegrini, que, a meu ver (ou ao meu ouvir), desta vez escolheu ser menos discreto nas sonoridades, talvez por força e inspiração do cinema, gênero que primeiro abraçou o livro. Sua trilha passeia por ritmos variados e marca presença grandiosa, inundando as intenções do texto de ondas sonoras bastante presentes.

O espetáculo termina como começa. Com uma criança em sua cama, em seu quarto de dormir. Uma cena cotidiana, um tributo à simplicidade da vida. Thiago Amaral acerta no tom do menino pródigo, de volta para casa, sem deixar a pieguice dominar sua fala, mas encharcando nossas almas de um conforto que o teatro, quando bem feito, nunca nos nega. O conforto de nos sentirmos dentro – muito dentro – de uma história bem contada.  E agora? Agora, bem, como ensina a peça, agora é só desejar, desejar, desejar… até encontrar a nossa verdadeira vontade.

E isso não tem fim.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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