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Claudia Wonder: peça traz à tona trajetória da multiartista travesti ícone do ativismo LGBTQIA+

Coluna Por Natália Beukers

O espetáculo-show ‘Wonder!! Vem Pra Barra Pesada’ (atuação, autoria, dramaturgia e idealização de Wallie Ruy e direção, dramaturgia e autoria de Rafael Carvalho), já foi realizado em diversos espaços culturais da cidade de São Paulo. E, este percurso de apresentações pela capital paulista, continuará até final de agosto. Além de Wallie Ruy, em cena também estão Felipe Botelho, Amanda Ferraresi e NBKÊ, formando a banda musical que conduz o espetáculo.

A peça traz à tona a brilhante trajetória de vida da saudosa multiartista paulistana Claudia Wonder (1955-2010). Em conversa inspiradora com Wallie Ruy, pude ter a dimensão do protagonismo que Wonder teve – e ainda tem – no cenário artístico e político brasileiro.

Reconhecida por suas letras musicais politizadas e por criar performances extremamente impactantes, Wonder contribuiu com a efervescência de sua arte para denunciar o preconceito brasileiro. Apesar de diversas portas fechadas por afirmar sua identidade como pessoa travesti, permaneceu forte em seus propósitos, tornando-se responsável por unir grupos do punk e do rock underground dos anos 70 e 80. No cinema, participou das pornochanchadas e, assim como no teatro e na literatura, sempre esteve intimamente ligada com as vivências da população LGBTQIA+.

Para àqueles que não a conhecem, quem foi Claudia Wonder?

Wallie Ruy: Claudia Wonder continua sendo! Ela é a história de São Paulo, do Rock Underground, da minha transcestralidade. Multiativista transvestigênere, ganhou notoriedade na década de 1980, quando fez uma performance chamada “Vômito do Mito”. Na época do advento da AIDS, ela se despia, ficava com uma máscara de demônio e, no Madame Satã, entrava dentro de uma banheira com groselha – sangue cênico. Ela jogava este sangue na plateia por conta da relação que se tinha – e se tem ainda hoje – de que o sangue transvestigênere, o sangue LGBTQIA+, é sujo, doentio. Foi apenas em 2020 que pudemos doar nosso sangue, sem qualquer tipo de preconceito. Surreal. Mas Claudia foi precursora, trouxe essa discussão na década de 80, artisticamente, com uma grande genialidade, sem se preocupar com a estética. Fez de seu corpo sua narrativa de vida. Essa é Claudia.

Quando começou a se inspirar em Wonder?

Fui apresentada a ela em 2008, durante minha transição travesti – eu tinha 22 anos, a mesma idade que ela tinha quando passou por esse processo. Ela escreveu uma vez: “Eu nunca me esqueço quando, aos 22 anos, tomei a decisão: vou virar travesti para ser amada.” Há muitas intersecções possíveis entre minha história e a de Claudia: sou do Teatro Oficina [Uzyna Uzona], ela também passou por lá, na década de 80. Em 2020 eu estava fazendo a peça Roda Viva, no Oficina, e um amigo – que também era amigo de Claudia – trouxe um hobby que ela usava e me entregou. No Oficina trabalhamos muito com as forças ritualísticas, então faço a leitura de como se, ao vestir aquele hobby, eu vestisse a pele dela. Parece que Claudia sempre está por perto, contando minha história junto comigo, contando nossas histórias. Eu, no espetáculo ‘Wonder!! Vem pra Barra Pesada’, não tenho o intuito de interpretar Claudia propriamente. Apenas conto nossas histórias. E, em determinado momento, o desejo de ser protagonista de minha própria história ficou latente, estava em um momento da carreira em que eu precisava fazer essa virada.

elenco de ‘Wonder!! Vem Pra Barra Pesada’ (Foto: Xisgenera / Divulgação)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De onde vem o título da peça?

Surge de uma música que ela fez chamada ‘Barra Pesada’. Ela enfrentou muitas lutas nesse sentido, diziam que o grande público não estava pronto para receber quem ela era, uma cantora travesti. Portanto, o mercado fonográfico não a abraçava… ela dizia: “Primeiro tive que tirar a roupa para depois poder cantar”. Isto porque precisou tirar fotos nuas para que pudesse financiar a produção de sua música. Era na música que Claudia pegava fogo. O louco é que, quando escrevemos o texto da montagem, ainda não havíamos passado pelo advento da pandemia. Então, a barra pesada, se estabeleceu. Hoje eu sei o que é a barra pesada, não só pela minha existência, e por minhas lutas, mas pelo momento que estamos passando.

Hoje o público está preparado para receber uma artista travesti?

Durante a pandemia tentamos realizar alguns projetos online e ouvimos, explicitamente, que o público online não estava preparado para o nosso trabalho. A diferença, hoje, é que temos protagonismo, pois nos autocoroamos. Hoje nós falamos, quem está com o microfone fala por todas nós. Agora, se há grandes diferenças? Receio que não. Nós podemos contar nos dedos as artistas travestis que conseguiram adentrar nos espaços midiáticos. Agora, devo preparar o público para devorar Claudia Wonder? Não. É importante que a plateia devore, saboreie e engula a seco essa arte transgressora, transformadora e efervescente do novo, daquilo que é vida, vivo.

Qual seria a função do teatro frente à luta LGBTQIA+?

Não só o teatro, mas todas as artes integradas, têm o papel único de revelar as condições de seu tempo. Claudia dizia que a travestilidade não deveria reduzir e nem definir nossos destinos – que era o que a sociedade esperava dela, e ainda esperam de mim, que caíssemos na prostituição de maneira compulsória. Enfrentamos discussões, hoje, que Claudia já abordava anos atrás. Se ela estivesse “presentificada” aqui, nesses tempos, estaria muito a frente. Qual a função da arte? Revelar e transformar nosso tempo. É dizer que os corpos transvestigêneres têm potencialidades e precisam ter espaço. Precisamos discutir isso e não só, mas também, de maneira panfletária – nossas falas estão carregadas de muita dor. Mas precisamos, além disso, celebrar nossos amores, conquistas, redes de afeto, precisamos evidenciar que amar e ser amado é privilégio. Os corpos transvestigêneres precisam e devem ser amados. O corpo é potencialidade visceral. A arte é um lugar de atuar, performar, de ser, lugar da existência. Devemos exigir existência.

Sente que, como artista travesti, é cobrada que fale somente sobre este universo?

Sim. Exigem que eu fale somente sobre minhas dores. No espetáculo, é inevitável falarmos sobre isso. Mas, também, trazemos a atmosfera do carnaval, da celebração do rito dionisíaco, da vida. Este corpo, minha existência, é sagrada, profana, prazerosa e, também, dolorosa. Só posso falar da dor porque também sei o que é a felicidade. A exigência de que nossas escritas sempre perpassem pelo lugar da “palestra”, diz mais sobre o público, que precisa se informar, do que sobre mim. Posso fazer qualquer tipo de arte. Mas, mais do que isso, é importante que haja protagonismo. Não quero mais ser o objeto de pesquisa, quero ser o sujeito da pesquisa. Quero falar sobre minhas próprias histórias, tenho habilidade, potencialidade e competência para falar por mim. Não preciso mais que as pessoas falem por mim, me deem voz. Nós sempre tivemos de gritar, pois as pessoas insistem em não nos escutar. Agora, quero, apenas, falar. Costumo dizer que na semana da visibilidade trans, em que as pessoas escolhem nos ver, não é algo mais que nos contemple. Além da visibilidade, há o afeto, o amor. Tem horas, inclusive, em que nem quero ser vista, pois muitas vezes sou apontada. Minha existência transvestigênere parece vir antes de minhas potencialidades e competências. Tenho habilidade e desejo de ser muitas coisas, não só atriz travesti. Isso não quer dizer que não explore minha existência travesti; ela me dá muita potência, mas as minhas narrativas não cabem dentro de uma roupagem, vão além.

Por que o espetáculo será realizado em diversos teatros?

A ideia é apresentarmos em vários teatros para primeiro, descentralizar as manifestações artísticas, acessar pessoas que não teriam oportunidade de ir a determinados teatros, e, em segundo lugar, para mostrar que pessoas travestis devem frequentar esses espaços, para que elas se apropriem desses teatros. Para que entendam que não existe nenhum tipo de norma, regra, para que elas possam adentrar aos espaços culturais. O teatro é a ágora grega, o lugar em que vamos debater e discutir nossas questões do “aqui e agora” e, se não for para fazermos isso juntos, não há como existir teatro. É importante salientar que não queremos contemplar somente o público transvestigênere. Quero que todos conheçam as histórias de Claudia, por exemplo. Ela foi, e é, uma figura importante para o nosso país, não só por ser uma ativista travesti, mas por sua existência humana.  Além disso, Claudia foi uma pessoa que permeou as zonas de conflito. E, nós, de uma forma ou de outra, estamos em guerra – queremos permear as zonas de conflito também. O teatro tem o poder de fazer isso, atravessar zonas de guerra, e as armas são nossas próprias palavras. É a cena em chamas.

Tem algo que, geralmente, não perguntam em entrevistas e que sente necessidade em falar?

Gostaria de dizer que este governo vigente é uma peça de mau gosto e que deve sair logo de cartaz. Se Claudia estivesse aqui, hoje, estaria fazendo de tudo para tirar essa peça de cartaz; não podemos mais assistir a este espetáculo. Digo isso não no lugar do ódio – o ódio não nos faz ganhar nada, esta é a linguagem que eles estão usando – precisamos realizar a mudança pelo canal da celebração, em que vamos derrubar todos os mitos com muita festa.

Serviço:

Acompanhe a página do espetáculo no Instagram: @coletivawonder

Teatro Alfredo Mesquita – Av. Santos Dumont, 1770, Santana
Apresentações: 1º, 2 e 3 de julho
Na sexta e no sábado, às 20h, e no domingo, às 19h
Ingressos: Gratuitos

Complexo Cultural Funarte SP – Alameda Nothmann, 1058, Campos Elíseos
Apresentações: 8 a 17 de julho
Às sextas e aos sábados, às 20h, e aos domingos, às 19h
Ingressos: Gratuitos

Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona – Rua Jaceguai, 520, Bixiga
Apresentações: 18 a 21 de agosto
De quarta a domingo, às 20h y 19h
Ingressos: A preços populares, vendas a partir de Julho/2022.

 

Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz, criadora do Infoteatro e colaboradora de Cultura da Vogue Brasil, tendo escrito mais de 50 textos até então. Formada em Direito pela PUC-SP (2020), começou a estudar teatro aos 10 anos de idade, formando-se como atriz em 2017. Estudou, de 2017 a 2021, com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos do grupo: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”. Foi assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. A partir da criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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