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Foto: Alê Catan
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“Dois Papas” amplia diferenças entre religiosos para debate político sobre posições de esquerda e direita

Celso Frateschi e Zécarlos Machado protagonizam o espetáculo, dirigido por Munir Kanaan, que contrasta ideias em nome de objetivo comum

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

De um lado, um idoso exausto, pensando que chegou a hora de cuidar de si mesmo. Parece um sujeito legal, apesar de escorregar em certas vaidades e posições retrógadas. Ele gosta de música, toma sua cerveja gelada e, na idade avançada, acha que abraçou responsabilidades desnecessárias. “Quem quer começar um trabalho novo aos 78 anos?”, indaga, arrependido.

Em um polo oposto, há um outro senhor igualmente cansado. Sua cabeça ferve cheia de reflexões. São as tragédias do mundo, as injustiças em cada esquina, as ditaduras que insistem em destruir a democracia e a sensação de que, apesar de fazer tanto pelo outros, não muda nada ao seu redor. Ele gostaria de parar, mas não conseguiria lavar as mãos e dormir tranquilo. “Um padre é sempre um veículo falho”, constata, com o peso na voz.

O primeiro é o alemão Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI (1927-2022), um religioso ultrapassado, que rejeita ideias progressistas e a pressão para que encare um mundo em mutação. Com um copo de cerveja na mão, ele parece tão humano como tantas figuras que conhecemos e podemos até desfrutar de algum prazer na sua companhia. Pelo menos até discordar de alguns dos seus posicionamentos que não fazem mais sentido no século XXI.

Foto: Alê Catan

O cardeal argentino Jorge Bergoglio, o futuro Papa Francisco, é o segundo sujeito, aquele que não aguenta mais ser visto como um rebelde. Ele pretende se aposentar devido aos constantes embates com Bento XVI, o líder máximo da Igreja, de quem não tolera o conservadorismo que fecha os olhos para a modernidade. Bergoglio parece até relaxar quando vibra diante da televisão que exibe um jogo de futebol, mas prevalece a imagem tensa, uma névoa que contamina quem o cerca.

Escrita pelo dramaturgo neozelandês Anthony McCarten, a peça Dois Papas inspirou o filme homônimo dirigido por Fernando Meirelles e ganha a primeira montagem fora dos palcos ingleses que pode ser vista no Sesc Santo Amaro, em São Paulo. Sob a direção de Munir Kanaan, o espetáculo coloca em cena dois atores excepcionais – Zécarlos Machado como o Papa Bento XVI e Celso Frateschi na pele de Jorge Bergoglio – e, justamente por isso, alcança um grau de humanidade capaz de refletir uma discussão que ultrapassa o limite dos personagens.

No teatro brasileiro, Dois Papas serve como um oportuno veículo para o espectador pensar sobre as razões que podem ter desgastado a imagem da esquerda junto aos eleitores e feito com que a direita ganhasse imensa identificação, especialmente na última década. É o embate entre a razão e a emoção, da luta pelo coletivo que suga energia em contraste com uma visão presa a conceitos deterministas que gera representatividade aos cidadãos comuns.

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O filme, protagonizado em 2019 por Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, respectivamente Bento XVI e Jorge Bergoglio, não oferecia tão facilmente esta leitura. Na montagem brasileira, isto é óbvio, principalmente pelo despudor de apontar inegáveis qualidade que podem ser vistas como defeitos e vice-versa nos dois personagens.

A principal ferramenta para se chegar a esta conclusão se dá em dois longos prólogos que antecedem o encontro entre os protagonistas. No primeiro, Bento XVI janta com a Irmã Brigitta (interpretada por Eliana Guttman), sua amiga há 18 anos, com quem compartilha visões semelhantes. “Aqui é um dos poucos lugares onde posso relaxar de verdade”, comenta ele, em uma conversa leve, em que pode, inclusive, verbalizar queixas em relação aos turistas e fotógrafos que lhe tiram a tranquilidade no Vaticano.

Neste momento de intimidade, o fragilizado Bento XVII se assume como insuficiente para as tarefas que os novos tempos lhe impõem e reconhece não ser um líder nato, algo cada vez mais exigido de alguém em postos de comando. “A sua tolerância comigo é um milagre”, diz para a amiga. Irmã Brigitta é austera, tradicionalista, prega os valores determinados pelo catolicismo há séculos e, na sua visão, o pecado realmente mora ao lado. “Quando se frequenta uma discoteca como se pode ouvir a palavra de Deus”, observa Brígida, em relação aos jovens.

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O encontro de Jorge Bergoglio com a jovem Irmã Sofia (papel de Carol Godoy), no segundo prólogo, é repleto de densidade. Aos 75 anos, o cardeal argentino manifesta a intenção de pedir a aposentadoria e descansar do peso das responsabilidades. “Nós precisamos do senhor!”, rebate a interlocutora, que rememora a sua história familiar. Ela cresceu marcada pela ditadura militar em seu país e encontrou motivação para seguir adiante graças às palavras de Bergoglio. Sofia, agora, se enxerga do outro lado e é ela quem deve impedi-lo de desistir: “O que importa é o que o senhor acredita e não o que a Igreja nos ensina há milhares de anos”.

Como dramaturgia, as duas primeiras cenas, que não são apresentadas no filme, têm a função de mostrar a humanidade latente dos protagonistas antes de começar a peça propriamente dita, quer dizer, o duelo de Bento XVI e Jorge Bergoglio em Roma. Talvez elas se arrastem demais, chegando a deixar a sensação de uma verborragia que poderia ser amenizada, mas faz com que o espectador exercite a paciência para que chegue ao conflito principal munido de uma bagagem consistente.

Até porque é na contracena de Zécarlos Machado e Celso Frateschi que o teatro se consuma. A espera é longa – apesar de Eliana Guttman e Carol Godoy defenderem com empenho os seus papéis. Machado e Frateschi são uma dupla habilitada para fazer o que bem entender com os personagens que lhe caem nas mãos e, para dar força a um texto tão calcado nos diálogos, parecem a melhor escalação possível. O público compra a imagem dos dois como aquelas figuras e o fato de nenhum deles ser visto como celebridades faz com que haja uma transmutação entre as figuras reais e os intérpretes.

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É o encontro de dois homens de pensamentos opostos que têm em comum a dedicação à Igreja Católica e servirá de teste contra o radicalismo de ambos. É preciso escuta, tolerância e a abertura para concessões. Aliás, Bento XVII já critica o colega por causa das tais concessões que ele pode ter feito. Este, por sua vez, se defende que mudou, assim como o mundo. “Tem uma diferença entre o que uma pessoa pensa e o que ela pode dizer”, argumenta o Papa.

Encontrar um espetáculo de teatro alicerçado em uma dramaturgia que não induza o espectador a assumir uma posição a favor do seu conteúdo é cada vez mais raro. Em Dois Papas, o que importa é o público tirar as próprias conclusões e, para isto, é apresentada uma narrativa quase jornalística em que os fatos são expostos sem tomada de partido e a chamada parcialidade se dá pelas situações que definem o caráter dos personagens.

Bento XVI é, obviamente, um conservador, assim como Irmã Brígida, e o futuro Papa Francisco é um progressista, a mesma linha de Irmã Sofia, e este eixo permeia as ações. Só que os dois – ou os quatro – são falhos, humanos, erram e acertam e, de acordo com a vida real, não se limitam a julgamentos ou carimbos de vilões ou mocinhos.

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A compreensão de que a peça é um debate de ideias é o grande mérito da encenação comandada por Munir Kanaan. Ator com mais de duas décadas de estrada, o diretor é um estreante na função e, se por um lado se mostra humildade por reconhecer onde está pisando, ele demonstra eficiência em um trabalho de proporções ambiciosas. Kanaan carrega a sabedoria de não procurar um brilho que vá além do texto, do elenco e da contemporaneidade da discussão – o que caracteriza sua estreia como um feito promissor.

Ele exercitou a direção em trabalhos virtuais na pandemia e, no fim do ano passado, assumiu um projeto alheio em fase de processo avançado para “apagar um incêndio”. Protagonizada por Carol Godoy e Rafael Steinhauser, a peça Apesar de Tudo cumpriu rápida temporada no Teatro do Núcleo Experimental, quando o artista já se dedicava ao atual trabalho.

Kanaan, entretanto, ostenta um histórico de idealizador e produtor que lhe garante crédito para a empreitada. O espetáculo Hotel Mariana é o principal deles. A montagem, lançada em 2017 sob a direção de Hebert Bianchi, é um documentário cênico inspirado na tragédia que cobriu de lama a cidade mineira de Mariana Foi ele quem levantou a pesquisa e colheu depoimentos pessoalmente uma semana depois do desastre ambiental, em novembro de 2015. Esta conexão com os acontecimentos reais aproxima Hotel Mariana e Dois Papas e garante a responsabilidade do agora diretor com um material factual.

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Diante de tanta objetividade e respeito aos elementos verídicos, o cenário criado por Eric Lenate pode ser visto como uma bem-vinda liberdade poética em meio ao realismo. Completamente subjetiva, a arquitetura cênica é formada por estruturas e formas brancas em que chamam a atenção as batinas e os hábitos dos religiosos, e qualquer outro símbolo católico é dispensado.

É como se cada um dos atores caminhasse pelo céu e as mesas, por exemplo, se transformam em um piano ou as madeiras claras servem de telas para as projeções. A iluminação idealizada por Beto Bruel valoriza as variações de tempos e espaços de acordo com a intensidade das questões tratadas e o uso das demais cores transmitem sensações e climas condizentes às tensões da trama.

Independentemente de todas as qualidades, Dois Papas atinge a sua consagração por causa de Zécarlos Machado e Celso Frateschi. O fato de Kanaan contar com dois grandes atores de estilos tão diferentes faz com que o diretor leve para a cena um contraponto semelhante aos dos dois religiosos. Machado é um intérprete orgânico, subjetivo, visceral em seu processo, o que contrasta com Frateschi, um artista racional, técnico e apegado à lucidez do discurso.

Vendo de fora, parece trabalhoso encontrar um equilíbrio entre artistas de temperamentos heterogêneos. A contracena dos dois, porém, prova que o encontro de artistas de perfis distintos só enriquece um resultado no teatro – o que os aproxima do alemão Joseph Ratzinger e do argentino Jorge Bergoglio, duas cabeças radicalmente opostas dedicadas a uma ação comum, a Igreja Católica.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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