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Entre o Rei da Vela e o Rei da Dinamarca: um reinado que ficou na memória

Coluna Por Frank Abreu

A sala de cinema da Universidade de São Paulo (CINUSP) exibiu recentemente o filme O Rei da Vela, criação de José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes que estreou em 1982. A exibição fez parte da segunda edição do fórum Teat(r)o Oficina na USP, criado em memória de Zé Celso, falecido em julho de 2023. O evento, organizado por alunos do departamento de filosofia da universidade, aconteceu nos dias 16, 17 e 20 de setembro. A programação trouxe performances musicais, dança, cinema, teatro e mesas de debate que reuniram pesquisadores e artistas da Companhia de Teatro Oficina Uzyna Uzona.

Enquanto eu aguardava o início da sessão de O Rei da Vela no CINUSP, minha memória retornou para o ano de 2001, quando pela primeira vez assisti a um espetáculo no Teatro Oficina. A peça era o Hamlet, de Shakespeare, que eles montaram originalmente em 1993 para a reinauguração do teatro reformado a partir do projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi e Edson Elito. Em 2001, o objetivo da reencenação era o registro em vídeo do espetáculo.

Na porta do teatro, confessei a meus amigos que temia as possíveis interações do elenco com o público. Imediatamente todos revelaram o mesmo receio. Poucos anos antes, as imagens de Caetano Veloso sendo despido no espetáculo As Bacantes foram exaustivamente repetidas nos programas televisivos da época. Logo em seguida, Adriana Calcanhotto garantiu ao episódio um lugar de destaque na cultura pop nacional ao lançar a canção “Vamos Comer Caetano”, na qual ela propõe um banquete antropofágico tendo o cantor como prato principal. O ocorrido na peça de Zé Celso foi descrito nos seguintes versos:

Pelado por bacantes

Num espetáculo

Banquete-ê-mo-nos

Ordem e orgia

Na super bacanal

Carne e carnaval

Dado esse contexto, era impossível ir ao Teatro Oficina e não temer pela própria nudez. A experiência adquirida com o tempo nos ensinou que os atores nunca obrigam as pessoas a fazer o que não querem: só entra na brincadeira quem está a fim de brincar. No entanto, meus amigos e eu não tínhamos essa experiência em 2001. Sendo assim, combinamos uma estratégia: beberíamos umas taças de vinho para relaxar e nos sentaríamos no andar mais alto da plateia. Como todos sabem, no Teatro Oficina o público se acomoda nas galerias que ocupam as paredes laterais de cima a baixo e o espetáculo acontece no corredor central.

E lá estávamos nós, na arquibancada mais alta, acompanhando o Hamlet interpretado por Marcelo Drummond na sua busca por vingança contra o assassino de seu pai. Tudo corria bem até que… Zé Celso faz a seguinte pergunta ao público: “Quem de vocês é digno de se sentar no trono do rei da Dinamarca?” O silêncio que tomou conta do teatro foi quebrado apenas pela minha voz gritando lá do alto: “O Claudinei!!!”.

Sim, prezada leitora; sim, meu caro leitor: o Claudinei era um dos amigos que me acompanhavam naquela noite. E ele respirou aliviado quando Zé Celso, demonstrando não ter ouvido o meu grito de traição, perguntou novamente: “Quem é digno de se sentar no trono da Dinamarca?”

Naquele momento eu tentei ficar calado, mas o vinho que bebi na porta do teatro não me permitiu e eu gritei novamente: “O Claudinei!!!”. Zé Celso captou a mensagem e conclamou: “Ó, divino Claudinei, venha até nós para que possamos ver a sua face!” Então, algo mágico aconteceu: meu amigo, cheio da coragem que só o vinho proporciona, começou a descer as escadas da arquibancada. Ele ainda nem tinha chegado ao trono e o teatro inteiro já cantava em uníssono:

EI-EI-EI, CLAUDINEI É NOSSO REI

E foi assim que, por alguns minutos, o rei Claudinei ocupou o trono do rei Cláudio, o regicida, assassino do próprio irmão, homem que em breve sofreria as consequências de seus atos através da vingança de Hamlet. Mas antes que tudo isso acontecesse, meu amigo saiu de cena e juntou-se novamente ao público. Nossa amizade balançou, mas o episódio foi superado. Um ponto em especial foi determinante para a superação: Claudinei retornou à plateia com todas as roupas no corpo.

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Nota: Como dito no texto, o espetáculo foi registrado em vídeo. Em 2020, durante a pandemia, o canal do Teatro Oficina no Youtube disponibilizou a apresentação na íntegra (continua disponível no momento em que escrevo esta nota). Não sei se felizmente ou infelizmente, mas a meteórica ascensão de Claudinei ao trono da Dinamarca não entrou no corte final do vídeo.

Foto: Teatro Oficina em 1993, por Lenise Pinheiro.

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Frank Abreu

Frank Abreu

Formado em História pela FFLCH/USP. Escreve sobre teatro com o olhar de um cronista. Morador de São Paulo, aproveita ao máximo as oportunidades que a cidade lhe oferece para fazer teatro como espectador, a partir de seu lugar na plateia.

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