Lá pelas tantas, o personagem H (interpretado por Fabio Assunção) fala para a personagem M (papel de Drica Moraes): “Nós somos um paradoxo!”. Ela, imediatamente, completa “nós somos dois paradoxos” e lança um olhar cúmplice ao marido. A melhor definição de Férias, peça escrita por Jô Bilac e dirigida por Enrique Diaz e Debora Lamm, é essa mesma. Trata-se de uma comédia de paradoxos, em que muito o que parece ser imediatamente cai em contradição e muito do que se espera, felizmente, desaba por água abaixo.
Em primeiro lugar, guarde o preconceito no bolso antes de começar o espetáculo, mesmo aqueles que são estimulados na entrada do teatro. As fotos do cartaz e de divulgação sugerem uma peça que não é exatamente aquela, com os protagonistas de roupas estampadas e colares havaianos, como caricaturas de turistas. A sinopse descreve um casal cinquentão em um cruzeiro que se descola da realidade como máquinas sexuais, pronto para todas as loucuras do mundo. Ok, até é, mas não é só isso.
Tal visão soa um tanto limitadora para a obra de Bilac e, por fim, a maioria do público um pouco mais exigente vai com um pé atrás, por puro preconceito, ao assistir a mais uma comédia com astros globais. Ainda mais se a tal comédia é estrelada por Fabio Assunção e Drica Moraes, escrita por Jô Bilac e dirigida por Enrique Diaz e Debora Lamm. “É muita gente boa reunida e, quando é assim, no teatro, quase nunca dá certo”, podem pensar os do contra, caçando mais um motivo para não gostar. Calma, neste caso, deu certo.
Dê uma chance para Férias, mesmo com o preconceito guardado no bolso – ele vai lhe ajudar a, em dado momento, relaxar e se entregar à diversão. Acredito que você não irá se arrepender, principalmente por causa dos seus muitos paradoxos que começam pela escalação dos protagonistas.
Fabio Assunção é o galã por excelência da televisão nos últimos 30 anos, o Brad Pitt brasileiro, como o texto até brinca, o homem que fez – e faz – muita gente suspirar e moldou o seu talento na marra, muitas vezes, em cima das próprias fragilidades. Drica Moraes, por sua vez, mesmo tendo feito bastante comédia, é vista como a atriz dramática, trágica, intérprete ideal das perturbadas, das traídas e das suicidas. Além disso, carrega a carga emocional de uma mulher que também enfrentou barras pessoais e descobriu um descompromisso na atuação que fica visível até no drama – embora o público médio não perceba isso.
Pois então, o galã dos anos de 1990 e 2000, agora, toma a pílula azul, tem uma tremenda resistência para viajar e, preguiçoso, volta e meia diz que prefere o sofá da sua casa. A louca das novelas rebola em cena, extrai graças de qualquer piada e protagoniza números de plateia, alguns bem dispensáveis, no limite da chanchada. Em Férias, porém, tudo é mais subjetivo do que parece e, para o melhor entendimento, é bom que a gente explique que, por trás disso tudo, existe uma história bem comum. Só que essa história transportada para o palco por tanta gente boa, virou uma outra coisa, uma comédia sobre um casal de meia-idade em que várias camadas se sobressaem.
H e M vivem juntos há 25 anos e, como presente pelas bodas de prata, ganham dos filhos, já adultos e independentes, um cruzeiro pelos mares do Caribe. A primeira cena da peça, entretanto, mostra os dois algemados em uma delegacia da Colômbia. “A existência é uma utopia paranoica”, diz M. Volta no tempo, e o perrengue começa na arrumação das malas, H pensa em desistir do passeio, as discussões esquentam e, enfim, os dois embarcam e sabe-se lá o que pode acontecer.
Chegando lá, a surpresa: mesmo cinquentões, eles parecem de longe os mais jovens da tripulação em meio aos casais de cabelos brancos e movimentos lentos. Nada melhor, então, do que abraçar a representação da juventude. Muita bebida, muita atividade, muito sexo – até em lugares públicos do navio –, o que caracteriza atentado ao pudor e dá início aos problemas. Como dois adolescente, H e M decidem que os filhos não podem saber e, então, eles precisam se virar sozinhos.
Mais do que isto é desnecessário contar – até porque o barato é ver como isso foi levado ao palco e achar graça nos pontos em que você se permitir. Sim, porque, contada de outro jeito, a peça poderia resultar num mero digestivo, mas, com Fabio e Drica, tem horas que até pode doer… “Água parada apodrece, vai acabar o nosso casamento”, diz M. H se pergunta onde foi parar aquela mulher leve que o fazia achar graça de tudo e, agora, só reclama.
Como disse Drica, em uma recente entrevista a este que vos escreve, comédia virou uma palavra meio “usurpada”, todo mundo acha que pode fazer e qualquer coisa pode ser. Drica e Fabio seriam muito mais elogiados se protagonizassem um conflito denso de casal, uma história pesada sobre a reconstrução de uma relação, explorando os seus inegáveis potenciais dramáticos. Só que é exatamente isto que eles estão fazendo no palco, porém sob uma perspectiva cômica e, em certos momentos, dramática. É só querer enxergar.
Férias não é uma comédia em torno de situações clichês e personagens estereotipados. Existe até uma referência ou outra que beira o chavão. Só que a base é original e apoiada em uma visão diferente, até sob o ponto de vista geracional, o da turma de 50 e poucos, que já chegou a uma maturidade, mas ainda apresenta uma energia que não era comum há algumas décadas. E não se pode esquecer de que é esse público, aquele que circula pelos 50, que paga o ingresso do teatro – e ainda não é a meia-entrada – e gosta de se identificar com o que vê no palco.
Seria essa a comédia de costumes dessa segunda década do século XXI? Provavelmente sim, uma comédia que se diferencia do stand-up e outros tipos de solos e mexe em questões mais pessoais que coletivas, afinal são tempos individualistas. Não faz mais muito sentido rir de diferenças sociais, comédias de erros ou trapalhadas que sempre acabam manchando pejorativamente a imagem de um ou outro personagem e desabam no preconceito. O palhaço hoje é outro – somos nós mesmos –, aquele que consegue rir das próprias desgraças, e, nesse ponto, novamente faz diferença ser Fabio e Drica, o galã e a trágica, no palco.
Quando se pensa em comédia logo vem à mente atores e atrizes pesadamente caracterizados, com figurinos e maquiagens que os distanciam da imagem real, fugindo do naturalismo ainda nas vozes e nas posturas. Em Férias, Fabio é Fabio e Drica e Drica – o que reforça a identidade de cada um e a capacidade de comunicação através de personagens. Drica e Fabio interpretam bêbados sem recorrer a uma voz pastosa ou a um movimento cambaleante. Os dois transmitem o fogo de H e M, mas, para isso, mal se tocam e até quando representam outros personagens, o jovem casal X e Y, é como se não buscassem a construção de novos tipos. Fazem um deboche de si mesmos e de H e M para chegar em X e Y.
Os figurinos criados por Antônio Medeiros são casuais e, no máximo, recorrem aos criativos aventais feitos por tecidos estampados por genitálias, como simbologia para os personagens nus. A cenografia assinada por Dina Salem Levy ocupa o palco como uma espécie de pista de skate que pode ser um navio ou um apartamento e propicia à dupla movimentos como se escorregassem em um tobogã para aliviar os climas de relativa tensão. O público fica com inveja.
Para a construção dessa comédia de costumes contemporânea, existe uma visão oxigenada em torno do que é fazer rir até pelo conhecimento do que é drama. Enrique Diaz é um dos maiores diretores do teatro brasileiro, consagrado à frente da Cia. dos Atores, da qual Drica também é uma das fundadoras. Ele assinou versões ousadas na época de Hamlet, de Shakespeare, e A Gaivota, de Tchekhov, e uma das joias da cena nacional deste começo de século, In on It, de Daniel MacIvor, com Emílio de Mello e Fernando Eiras.
Assim como Drica, nos últimos anos, Diaz parece ter procurado e descoberto uma certa leveza. Ressuscitou a sua veia de ator, há muito deixada de lado, marcou presença em novelas e deve ter passado a entender um pouco mais sobre o que o público espera. A parceria com Debora Lamm, nome mais associado à comédia, está ali para estabelecer os pesos e as medidas, o quanto se pode buscar a graça sem que fique sem graça e, se é para ser politicamente correto, colocar um olhar feminino na trama de casal.
Algo semelhante pode ser dito sobre Jô Bilac, dramaturgo que despontou na segunda metade da década de 2000, com peças desafiadoras, como Rebu, Conselho de Classe, Beije Minha Lápide e Fluxorama, sempre densas. Bilac também superou alguns recentes revezes da vida, viu a saúde prevalecer e faz de Férias uma simbologia sobre as dores e as delícias de viver.
Curtir férias é o sonho de muita gente o ano inteiro, mas pode dar trabalho, desde a escolha do destino até os imprevistos comuns ao visitar um lugar estranho. Casamento também é bom, mas mantê-lo dá um trabalho imenso. Por isso, Férias, o espetáculo, lida com todos esses paradoxos, que são importantes para as carreiras de Drica e Fabio, de Diaz e Débora e de Jô, mas, principalmente para o público, que pode vê-los em um lugar diferente do óbvio – e próximo de seus conflitos cotidianos.
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