Fernanda Montenegro fez 95 anos de idade. E o que mais me deixa admirado na nossa maior atriz, em paralelo a toda qualidade, talento e inteligência que ela resume nesse quase século de existência vocacionada ao teatro, é que ela, Fernanda Montenegro, não existe. Não existe. Simplesmente e concretamente não existe. É um nome inventado. E isso não significa pouca coisa isso. É, ao contrário, um contrato ético com a profissão de ator. O ator, na sua essência, é alguém vocacionado a servir de veículo a um texto que contém palavras que não são suas palavras. Um ator representa papéis, máscaras artificiosas que não se encaixam em seu rosto, um ator coloca-se à disposição da ideia de um autor que possivelmente contraria às suas particulares ideias, o ator está diante de um diretor e de outros atores que juntos trabalham para criar uma imagem do humano que supera qualquer identidade pessoal, qualquer desejo de exposição pessoal.
Um ator de teatro já é, na sua própria concepção e origem, alguma coisa direcionada ao esquecimento, à sombra, ao anonimato, à evaporação sumária, instantânea e permanente. Fernanda Montenegro parece compreender isso bastante bem. A Arlette, nome verdadeiro da Fernanda Montenegro, não está disponível para ninguém, não interessa, não interessa a ela, a Fernanda Montenegro, que a Arlette seja para mim e para você motivo de algum interesse. Mas isso soa esquisito demais, não? Porque hoje o esforço é para que todos assinem o seu nome, mostrem a sua cara em plano fechado – close up no nariz, na alma, no coraçãozinho autobiográfico e afetado, dolorido -, é preciso abrir as portas de casa, convidar o mundo para sentar no seu sofá, deitar na sua cama, tomar café naquela xícara que tem lá no seu armário da cozinha. Queremos legitimar um sentimento próprio, colocar a nós mesmos à frente, em primeiro lugar, angariar seguidores e plateia para que sejamos conhecidos na mais indevassável curiosidade enxerida que consiga expor nossas tripas ao olhar alheio. O palco é a nossa vitrine. O nosso Instagram.
O personagem, nesses termos, passa a ser um simples pretexto. O bom autor só é mesmo bom se ele nos colocar lá, para falar do que somos, do que sentimos, preferencialmente é mais interessante que não haja autores, palcos, urdimentos, cenários, maquinarias… arranquem tudo para que eu possa me mostrar naquilo que verdadeiramente sou. A máscara que nos serve, hoje, é aquela que cola no nosso rosto, é o nosso próprio rosto.
Fernanda Montenegro faz 95 anos. E ela é o que é – para além do seu talento, vocação, competência e inteligência – porque ela é uma grande mentirosa, a começar pelo nome falso – Fernanda Montenegro. Talvez por isso ela seja a nossa maior e mais estupenda atriz. Porque a Fernanda Montenegro entendeu perfeitamente bem o que é ser uma atriz. Porque ela, Fernanda Montenegro, simplesmente… não existe.
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