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“HEDDA GABLER”, UM FASCINANTE ENIGMA TEATRAL

Coluna Por Maria Sílvia Betti

“Hedda Gabler”,  tragicomédia de Henrik Ibsen escrita em 1890, está em cartaz em São Paulo  até o dia 25 de agosto sob a direção de Clara Carvalho e elenco do Círculo de Atores. A peça teve sua primeira encenação no Brasil em 1907, ano seguinte ao da morte do dramaturgo, e teve  no papel da protagonista a lendária Eleonora Duse em sua segunda turnê no país. A estreia provocou intensas discussões nos meios teatrais do Rio de Janeiro e de São  Paulo. Para alguns críticos, teria sido preferível encenar uma peça mais conhecida do autor. Para outros, o ideal teria sido apresentar uma palestra explicativa antes do espetáculo para facilitar a sua compreensão pelo público.

Foto: Ronaldo Gutierrez

A pesquisadora Jane Pessoa, em seu alentado e completísssimo estudo ainda inédito sobre Ibsen no Brasil, comenta que Olavo Bilac, escrevendo para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, confessou-se aterrorizado diante da responsabilidade de escrever sobre a protagonista e a sobre atriz. Embora em seu artigo Bilac diga que havia se tornado  moda afirmar que “Hedda Gabler” era incompreensível, ele próprio , munindo-se de coragem,  comenta  que compreeendeu a peça  como quem compreende o ar que respira ou a luz que o alumia: Hedda, para ele, é  ilógica e misteriosa, nasceu para praticar o mal e para destruir vidas. Já quanto a Duse interpretando o papel, a comparação mais próxima que lhe ocorre é contemplar o David de Michelangelo ou ouvir a Sonata ao Luar de Beethoven.

Na França, matriz cultural dos padrões estéticos correntes no Brasil nesse período, havia grande resistência às peças de Ibsen, considerado um dramaturgo de caráter “nebuloso”. Francisque Sarcey [1827-1899], crítico francês poderoso e  conservador, temia que as peças de Ibsen contribuíssem para  destruir a tradição dramática francesa. Além de considerá-las incompreensíveis e inconsistentes, o crítico achava-as incoerentes  em  sua estrutura[1].

Foto: Ronaldo Gutierrez

Nos Estados Unidos opinião bem diferente seria  enunciada  em 1916  por Emma Goldman, militante anarquista , editora da revista “Mother Earth” e entusiasta do teatro europeu. Goldman valorizava , na dramaturgia de Ibsen, a rebelião contra a mentira social e moral , a servidão, e  a  insubmissão das subjetividades diante dos  condicionamentos  sociais.

Aqui entre nós, no Brasil, é  Décio de Almeida Prado, em 1983, que vai  resumir  o significado do papel de Hedda sob a ótica de sua interpretação cênica:

“Hedda Gabler está para as atrizes modernas um pouco como “Hamlet” para os atores clássicos. Ambos os papéis propoem a quem se decida enfrentá-los o mesmo enigma e o mesmo problema. Como conceber e transmitir uma imagem unitária, ao mesmo tempo humana e verossímil, de personagens cujos autores não souberam ou não quiseram enquadrá-la dentro de uma só perspectiva?”

Um ponto particularmente  interessante levantado  por Décio sobre a peça diz respeito, porém, ao fato de Ibsen não realizar nela, em cena, uma análise dos fatos e personagens por meio de confrontações sucessivas. “Em Hedda Gabler”, comenta o crítico, “ninguém nos esclarece porque ela é o que é e faz o que faz. Todas as inferências ocorrem por nossa conta e risco, como nas peças modernas de um Harold Pinter.”

Foto: Ronaldo Gutierrez

De fato, também Clara Carvalho,  diretora da montagem atual , comenta  que se trata de um texto muito seco e direto, sem “bifes” ou solilóquios, e com um funcionamento apoiado no jogo entre os personagens . Clara ressalta, em Ibsen,  a presença expressiva de mulheres que rompem com as estruturas patriarcais da época, mas reconhece o caráter enigmático de Hedda: é difícil entender de onde vem o seu desconforto, a sua inquietude, o seu mal estar existencial. Convencional demais para romper com as estuturas que a sufocam, diz Clara, Hedda  é excessivamente desajustada para sobreviver dentro dessas estruturas.

Uma grande ironia , portanto, perpassa “Hedda Gabler”: mesmo sendo incapaz de amar seu marido, seu amante e a criança que espera, Hedda não deixa de ser uma vítima da sociedade, dentro da qual sua sagacidade e energia  fazem dela uma criatura predadora num grau que ela própria não consegue suportar.

Foto: Ronaldo Gutierrez

REFERÊNCIAS

Silva, Jane Pessoa.
Ibsen no Brasil: historiografia, seleção de textos críticos e catálogo bibliográfico em três volumes https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-01112007-141703/pt-br.php  [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Tokunaga , Larissa Guedes
Emma Goldman e as chamas gêmeas da revolta: vida e arte na construção da individualidade humana em leitura anarquista de Max Stirner e Henrik Ibsen

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8161/tde-15082023-113956/pt-br.php [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Goldmann, Emma
The Social Significance of drama

https://theanarchistlibrary.org/library/emma-goldman-the-social-significance-of-the-modern-drama#toc2  [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Mother Earth (anarchist review)

http://dwardmac.pitzer.edu/anarchist_archives/goldman/ME/me.html  [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro (1907)

https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_04&pasta=ano%20190&pesq=Ibsen&pagfis=15132 [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Crônica de Olavo Bilac (assina O.B.)

https://memoria.bn.gov.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_04&pasta=ano%20190&pesq=Ibsen&pagfis=15153 [Acesso em 14 de agosto de 2024]

Entrevista: Clara Carvalho fala sobre Hedda Gabler, cruel personagem de Ibsen. Canal Morente Forte.

https://www.youtube.com/watch?v=68A0z-SPPFg

[1] Veja-se a este respeito, “Quarante Ans de Théatre” onde, a propósito de “Os espectros”,  Sarcey escreve: “ Ibsen nunca se preocupa em apresentar seus personagens, nem em explicar a ideia ou a história de sua peça. Os personagens entram em cena e começam a falar sobre seus assuntos, sem que saibamos quem eles são e quais são seus assuntos. Durante os dois primeiros atos é impossível, absolutamente impossível, apesar da mais constante atenção, adivinhar do que se trata, porque é que as pessoas que falam dizem estas coisas e não outras.” In https://xn--thtre-documentation-cvb0m.com/content/quarante-ans-de-th%C3%A9%C3%A2tre-tome-viii-francisque-sarcey#IBSEN:_Les_Revenants  [Acesso em 14 de Agosto de 2024]

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Maria Sílvia Betti

Maria Sílvia Betti

Pós-doutora pela New York University, doutora em Literatura Brasileira pela USP. É professora da FFLCH-USP, atuando no Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, ligado ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Estudos de Teatro (foco em Dramaturgia), atuando principalmente nos seguintes temas: teatro norte-americano moderno e contemporâneo, teatro brasileiro moderno e contemporâneo, dramaturgia comparada (estados unidos-brasil).

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