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Foto: Ronaldo Gutierrez
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“Macbeth em Cordel ou a Peça do Inominável” faz Shakespeare popular para falar do derramamento de sangue

O espetáculo, dirigido por Thiago Ledier, apresenta referências à realidade brasileira e, na sua simplicidade cênica e de produção, é valorizado pela urgência da mensagem

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O primeiro contato do ator Sergio Mastropasqua com o teatro e a obra de William Shakespeare foi como aluno da Escola Estadual Colombo de Almeida, no bairro da Casa Verde, zona norte paulistana. Lá, aos 16 anos, ele protagonizou uma versão de Romeu e Julieta, na pele do garoto romântico da família Montecchio. “Eu tinha um franjão na época”, lembra. Depois, participou de, entre outras, O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, e Hair, o musical de James Rado, Gerome Ragni e Galt MacDermot, viajou até o Festival Estudantil de Teatro de Tatuí e tomou gosto pela coisa. “Nunca na vida imaginei que seria um ator até isso tudo acontecer”, diz hoje, aos 58 anos.

Chegou a ser aprovado, no ano seguinte, nos testes do diretor Antunes Filho para o elenco de Romeu e Julieta (1984), ficou alguns meses no CPT (Centro Pesquisa Teatral) e, estressado com a sua rotina, que envolvia ainda o expediente em uma metalúrgica, saltou fora do curso. “Era um outro mundo, todos de uma classe média alta e eu precisava faltar ao trabalho por causa das aulas porque não tinha tanto tempo disponível”, justifica a desistência. “E aquele morde e assopra do Antunes para cima da gente também me irritava bastante.”

Mastropasqua, porém, aos 19 anos, começou a trabalhar meio período em um banco e, de passagem pela frente da Escola Estadual Padre Manuel da Nóbrega, na mesma Casa Verde, com a cara e a coragem típica da juventude, chamou a diretora para uma conversa. “Olha, meu nome é Sergio, sou ator e gostaria de fazer uma peça de teatro com os alunos. A senhora permitiria?”, perguntou. A resposta da professora foi um simples “pois não, pode fazer”.

O jovem artista percorreu sala por sala e pegou os nomes dos estudantes que demonstraram interesse em levantar essa empreitada ao seu lado. “Era uma quadra grande, bonita, com um palco, juntei uma grana minha, fiz o cenário com uma serra elétrica que tinha em casa e estreamos Macbeth em 25 de setembro de 1983 com todos os alunos representando os 34 personagens”, conta o ator, que dirigiu a encenação e, obviamente, interpretou o general Macbeth. Alguma coisa ele, certamente, aprendeu e se inspirou nas aulas do mestre Antunes Filho.

O tempo passou, veio a profissionalização e Mastropasqua revisitaria o universo shakespeariano em outros trabalhos de intérprete, como em Othello, A Sombra de uma Dúvida, dirigido por Fabrizia Alves Pinto, A Megera Domada, com o Grupo Tapa, e A Tempestade, encenação de Paulo de Moraes, tudo na década de 1990. Em 2009, no elenco da novela Malhação, da Rede Globo, cruzou com o ator e escritor Lafayette Galvão (1931-2019), que lhe contou que, ao lado de Gilberto Loureiro, tinha feito uma inusitada adaptação de Macbeth em forma de cordel, lançada no Rio de Janeiro em 1994. Deste elenco, participaram, entre outros, Ricardo Petraglia, Claudia Baroni, Antônio Pedro (1940-2023), Tessy Callado e Alice Borges. Mastropasqua, com o olho brilhando, pegou o texto e tentou convencer alguns parceiros de montá-lo, mas ninguém se entusiasmou tanto. Tudo bem. A ideia ficou na cabeça, quem sabe mais tarde a colocaria em prática.

Escrita em 1603 e 1606, Macbeth figura entre as obras-primas de Shakespeare, ao lado de Hamlet, Otelo e Romeu e Julieta. Na trama sobre a ambição, os generais Macbeth e Banquo, voltando de uma campanha, ouvem de três bruxas uma profecia: o primeiro se tornará rei e o segundo será pai de muitos reis. Instigado por sua maquiavélica mulher, Lady Macbeth, o personagem-título passa a acelerar o processo rumo à conquista da coroa e elimina um a um daqueles que podem ameaçá-lo na ascensão ao trono da Escócia. Só que ele não segura a onda, a cabeça começa a pirar e uma desestabilização geral toma conta do reino.

Objeto dos sonhos e da vaidade de muitos atores, Macbeth já foi interpretado, somente no Brasil, por Paulo Autran, Antonio Fagundes, Daniel Dantas, Thiago Lacerda e vários outros. Bem ou mal, Mastropasqua, nos seus 19 anos, tinha vivido o papel, mas sabe-se lá o que se passa na cabeça de um artista. Para ser Macbeth, ele recorreu à versão de Lafayette Galvão e Gilberto Loureiro – talvez por considerar que pudesse fazer algo mais próximo da realidade brasileira que conhece tão bem. Na adaptação final, realizada por ele e pelo diretor Thiago Ledier, o texto recebeu o título de Macbeth em Cordel ou a Peça do Inominável e pode ser visto até o próximo domingo, dia 26, no Teatro Alfredo Mesquita, com entrada franca e um elenco de catorze atores e atrizes divididos em 23 personagens.

Justificar o nome Macbeth em Cordel é fácil. A versão de Galvão e Loureiro é construída na forma de cordel, tradição portuguesa de oferecer os diálogos caracterizados pela rima e pela oralidade que ganhou força no Norte e Nordeste do Brasil. Neste caso, populariza a obra do dramaturgo inglês, tantas vezes vítima de traduções empoladas que entediam o público e ficam até longe da compreensão. A sequência do título – A Peça do Inominável –, no entanto, é o grande enigma e a mais abrangente possibilidade de leitura da encenação da companhia Círculo de Atores. Só o termo “inominável” já provoca o espectador a formar uma própria interpretação a cada passagem do espetáculo.

Sim, Macbeth pode ser simplesmente um “inominável” porque defeitos não lhe faltam – assim como para Lady Macbeth, interpretada pela atriz Chris Couto –, tornando-o um ser ordinário. A expressão também pode ser relacionada a uma velha lenda que corria no meio teatral. Costumava-se dizer que pronunciar o título da obra dava azar e tragédias podiam acontecer nos bastidores, então muitos preferiam chamá-la de “A Peça Escocesa”. Mas a adaptação final de Mastrospasqua e Ledier, apesar da fidelidade ao conteúdo do original shakespeariano, é marcada por uma neutralidade de ambientação que, de forma sutil, desloca a história para o Brasil da atualidade.

Raras vezes se localiza a trama na Escócia – poucas são as citações –, as tradicionais espadas da época desapareceram e dão lugar para armas de fogo contemporâneas e o reino em questão carrega referências diretas ao universo dos milicianos e, neste caso, o inominável, de acordo com as referências do espectador, pode ter nome e sobrenome bem conhecidos da política nacional.

Os figurinos do elenco masculino, em grande parte, reproduzem o verde militar camuflado ou os atores usam jaquetas acompanhadas de coldres em que descansam a munição capaz de ser disparada a qualquer momento. São pessoas que se acostumaram a conquistar seus objetivos na base da violência e no derramamento de sangue, algo que não ficou restrito ao século XVII.

As três bruxas (representadas por Camila Czerkes, Márcia de Oliveira e Priscilla Olyva), responsáveis pela profecia que vira a cabeça do general, abrem o espetáculo como um trio de garotas pulando corda e gritando palavras de ordem comuns às brincadeiras nas periferias. Parecem mais molecas dispostas a pregarem uma peça no primeiro que cruzasse o caminho delas do que criaturas com capacidades premonitórias.

A floresta pode até lembrar as vielas de uma comunidade onde motocicletas – sim, uma motocicleta invade o palco em certo momento – passam e são facilmente perdidas de vista na escuridão. O cenário, criado por Chris Aizner, mostra troncos de árvores sujos de vermelho sangue que instalados em praticáveis são movimentados com energia pelos atores no palco.

O Macbeth de Mastropasqua, como um homem do século XXI, não é tão ingênuo e manipulável pela ardilosa esposa Lady Macbeth, construída por Chris Couto com uma dissimulação sedutora e não no limite da loucura, como seria comum. A versão de Galvão e Loureiro, aliás, até minimiza o impacto da personagem principal feminina – o que é um tanto questionável. Em alguns momentos, pode-se até enxergar na dupla uma inspiração no casal Michelle e Jair Bolsonaro, enquanto os reais manipuladores seriam os soldados mais jovens e próximos ao general, associação que remete aos filhos do ex-presidente, Flávio, Eduardo e Carlos.

Desde a execução de Duncan (papel de Renato Caldas), o general não se mostra tão vulnerável, parece disposto a se livrar dos empecilhos para ganhar o poder. A instabilidade emocional começa a lhe assombrar depois do assassinato de Banquo (interpretado por Eduardo Silva) porque ali vem o remorso da traição de um companheiro de luta ou o arrependimento por ter entrado naquela jogada. Entre os destaques do numeroso elenco ainda vale ressaltar o trabalho de Guilherme Gorski, como Macduff, o antagonista do personagem-título.

O que mais aproxima a história de Shakespeare do cotidiano brasileiro é uma coloquialidade, por vezes até excessiva, nos diálogos. Em uma cena, Donalbain (o ator Nando Medeiros) pergunta ao protagonista: “Qual é teu nome, cachorro?”. O general Macbeth, meio debochado, responde na lata: “Ué?! Pra que esse esporro? Meu nome nem vou pronunciar, você se cagaria simplesmente ao escutar” e, em seguida, ouve do interlocutor “Não tenho medo de você, nem dos seus subalternos, mesmo que pelo nome atendesse e até mesmo se parecesse com o mais feio dos diabos que impera nos infernos”. Shakespeare, se vivo fosse, levaria um susto caso ouvisse tais falas e muitos dos estudiosos de sua obra condenariam tal liberdade, mas é justamente esse espírito que diferencia Macbeth em Cordel ou a Peça do Inominável de uma montagem convencional da obra do bardo inglês. Brasileiro fala assim, na periferia ou nos bairros burgueses, e ponto.

O espetáculo comandado por Thiago Ledier não se sobressai pelo trabalho dos atores, ainda que o elenco se mostre até coeso em seus papéis, ou pela encenação, despretensiosa demais para quem espera algo grandioso por se tratar de Shakespeare. Macbeth em Cordel ou a Peça do Inominável se destaca como um teatro de mensagem, de urgência, para falar coisas de hoje e de um jeito simples e objetivo. Nesta hora, se parece com as propostas do Teatro de Arena levantadas para enfrentar a repressão da década de 1960 e tem algo de extremamente sincero por não disfarçar as limitações orçamentárias.

Tudo é simples, às vezes, parecendo precário. A montagem consumiu R$ 260 mil, empregando catorze atores, além do restante da equipe criativa e técnica, e cumpre temporada, pelo menos no Teatro Alfredo Mesquita, com ingressos gratuitos. Pode não ter resultado em um espetáculo memorável, mas cumpre a função social e idealista de oferecer ao público uma reflexão de fácil assimilação sobre as disputas de poder sempre tingidas pelo sangue, seja em um reino europeu, em recantos do interior brasileiro ou nas grandes metrópoles. E, assim, Macbeth em Cordel ou a Peça do Inominável carrega uma força política que faz o espectador exigente fingir que não enxerga sua pouca ambição cênica ou a indisfarçável fragilidade orçamentária.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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