Faz dez anos que o seriado A Grande Família, exibido pela Rede Globo entre 2001 e 2014, saiu do ar, e o ator Marco Nanini, celebrizado como o personagem Lineu, ainda se sente assombrado pelo paizão da ficção. “É um peso e um prazer, não tenho como negar”, justifica. “Mas uma das coisas que mais gosto neste espetáculo é que eu limo a imagem do Lineu para as pessoas e até para mim mesmo.”
O espetáculo em questão é Traidor, a nova parceria do intérprete com o dramaturgo e diretor Gerald Thomas, que estreou em novembro em São Paulo e chegou ao Festival de Curitiba, com apresentações no Teatro Guaíra, nesta sexta (29) e no sábado (30). Na próxima quinta, dia 4, a montagem entra em cartaz no Teatro Prio, no Rio de Janeiro, e deve voltar à capital paulista em julho, antes de partir para a excursão nacional programada até o fim do ano.
No palco, Nanini dá vida a um ator – batizado com o seu próprio nome – isolado em uma ilha deserta, perdido entre conexões da vida real e delírios de sua imaginação fervilhante. Nanini, o personagem, vive alarmado por assombrações – e não são as do Lineu, de A Grande Família – e tem a mente povoada por seres estranhos e pensamentos desconexos, representados por um coro formado pelos atores Apollo Faria, Hugo Lobo, Marllon Fortunato e Wallace Lau e pela voz em off da atriz Fabiana Gugli, a diretora imaginária de Nanini e o alter ego de Thomas.
Para a composição visual, o artista recorreu a uma maquiagem forte e um figurino bordado com brilhos e pedras, além do cabelo arrepiado inspirado na figura do maestro inglês Leopold Stokowski (1882-1977). “É alguma coisa como o Stokowski ou até mesmo um pardal, o pássaro”, conta ele, que cuida de modelar o penteado com um gel e faz a própria maquiagem antes de cada sessão.
Traidor é o reencontro de Nanini e Thomas depois do grande sucesso de Um Circo de Rins e Fígados, espetáculo de 2005, tratado pela crítica e por eles mesmos como um dos pontos altos da carreira dos dois artistas. Se naquele texto, Thomas criou um universo relacionado aos traumas recentes da explosão do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, a nova peça reverbera o caos contemporâneo promovido pelas redes sociais e a ansiedade gerada pelo excesso de informações. “A dramaturgia é feita de fragmentos dessa criatura como se ela mesma fosse um roteiro do Instagram, em que você vê muitas imagens e não se conecta de fato a nenhuma”, explica Nanini. “É tudo pulsante e dinâmico, como toda a obra do Gerald.”
Para encontrar o foco do trabalho, porém, Nanini precisa de referências mais concretas, e a imagem deste homem isolado remete ao velho Próspero, protagonista da peça A Tempestade, de William Shakespeare. Todo este caminho foi desenhado junto ao dramaturgo e diretor, primeiro em longas conversas on-line – Thomas mora em New Paltz, perto de Nova York – e, depois, nos ensaios realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre setembro e novembro. “Eu não posso só fazer um Instagram da mente do personagem, preciso dar um sentido para aquele momento da vida dele e, pensando no Próspero, acho que todo mundo, nos dias de hoje, fica na solidão, remoendo ideias e sentimentos”, diz o ator.
Nanini chegou a Curitiba na quarta, dia 27, e, no dia seguinte, participou de uma conversa com o público e de uma sessão de autógrafos da biografia O Avesso do Bordado, escrita pela jornalista Mariana Filgueiras, no Sesc Passo da Liberdade. “Mariana pesquisou a minha vida inteira por quatro anos e encontrou muitas coisas que nem eu mesmo me lembrava mais”, conta, rindo.
Em meio às folgas, o artista, de 75 anos, pensou em ver alguns espetáculos do festival, como o solo Manifesto Transpofágico, da atriz Renata Carvalho, mas foi derrubado pelo cansaço e passou a maior parte do tempo recuperando as energias no hotel. Só saiu de lá para os ensaios e apresentações no Teatro Guaíra. “Traidor exige muito de mim, é tanta coisa que o personagem diz, faz, não tenho pausas”, observa. “Mas, para um ator, não há nada melhor que um personagem, você leva ao público uma outra vida que não é a sua e tudo corre a seu favor.”
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