Por quase um ano, a diretora Camila Bauer e a atriz Liane Venturella entrevistaram cerca de trinta profissionais do sexo, de meninas de 18 anos a senhoras com mais de 70, que trabalham em Porto Alegre. Elas passaram por ruas, praças, casas noturnas e até insuspeitos prédios do centro da capital gaúcha que se revelam um mundo à parte em andares que ainda hospedam escritórios e salas comerciais.
Em meio a tantas conversas, Camila e Liane desvendaram uma visão que contraria os estigmas em torno do mundo da prostituição e trazem à tona, claro, histórias de abusos e sofrimento, mas também de superação e até orgulho em relação ao ofício que, muitas vezes, é uma escolha. “É muito duro você trabalhar oito ou nove horas por dia para ganhar pouco mais de um salário-mínimo, aturar cantadas no chefe e ainda sofrer em uma condução lotada”, diz Liane. “Muitas destas mulheres conquistaram uma independência financeira para elas e suas famílias.”
O resultado é o espetáculo Meretrizes, experiência em teatro documental, que estreou em setembro passado em Porto Alegre e ganhou apresentações nesta sexta (29) e sábado (30) no Teatro Paiol, dentro da programação oficial do Festival de Teatro de Curitiba. Acompanhada da pianista Catarina Domenici, Liane dá corpo e voz a seis personagens, representando uma classe marginalizada e pouco ouvida no Brasil, inclusive, pelos ficcionistas.
A artista, que já interpretou, por exemplo, a prostituta Geni, do clássico Toda Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, e, ao lado da atriz Sandra Possani, protagonizou a montagem Aquelas Duas, sobre uma dupla de mulheres da vida que moravam em um armário, sob a direção de Nelson Diniz, garante que o atual projeto é diferente de tudo o que já fez. “Estas personagens anteriores carregavam o imaginário masculino da prostituição, eram vistas sob o olhar do homem e, agora, entramos no universo destas mulheres e, a partir dos seus próprios relatos, criamos a dramaturgia”, explica a atriz, de 59 anos.
Camila começou a se interessar pelo universo da prostituição quando morou em Sevilha, entre 2005 e 2010, para investir no doutorado em artes cênicas. Lá, a diretora dividiu apartamento com uma colega que trabalhava com direitos humanos e investigava o tráfico sexual de mulheres para Portugal e Espanha. “Não eram só profissionais do sexo, eram jovens que saíam dos seus países desavisadas e perdiam a liberdade, ficando nas mãos de criminosos internacionais”, recorda. “Pensar teatro, para mim, é um ato contínuo, nunca vem de uma coisa só e, em 2016, Catarina Domenici me chamou para dirigi-la em um trabalho musical baseado em depoimentos de mulheres silenciadas e tudo foi se costurando.”
A parceria de Camila e Liane começou em 2018 com a peça Inimigos na Casa de Bonecas, construção dramatúrgica inspirada nas peças Um Inimigo do Povo e Casa de Bonecas, do norueguês Henrik Ibsen, e se intensificou a partir da pandemia da Covid-19. Juntas, elas criaram o espetáculo virtual A Mãe da Mãe da Menina, que mostrava três gerações de mulheres, representadas ainda por Sandra Dani e Laura Hickmann, e o monólogo Derrota, sobre os feitos do isolamento pandêmico, que saltou do on-line para as plateias presenciais, participando do Festival de Curitiba em 2022.
Em comum, todos os trabalhos abordavam o universo feminino e tirar da gaveta a ideia de abordar a prostituição gerou entusiasmo semelhante em Liane. Em uma cena de Meretrizes, a atriz encara a plateia e pergunta aos espectadores: “Vocês têm alguma prostituta na família?”. O silêncio, normalmente, toma conta da sala. “Muitos deles devem ter, mas não sabem, porque esta profissão não vem estampada na testa de ninguém”, afirma a protagonista. Camila completa justificando que as profissionais do sexo trabalham com o sigilo e existe um pudor, uma resistência difícil de romper, inclusive para evitar a exposição delas na própria família. “Muitas são mães, os filhos estudam em bons colégios, fazem cursos de inglês e ninguém desconfia”, diz a diretora. “Vivemos em uma estrutura social muito cheia de preconceitos e o trabalho destas mulheres não é visto como profissão.”
Algumas das prostitutas entrevistadas acompanharam parte dos ensaios e deram palpites para melhor adequar o texto a uma voz mais próxima da realidade possível. “A gente buscou um ponto de equilíbrio porque não queria muito drama, mas também era importante fugir da romantização”, comenta Camila. “Nossa ideia sempre foi ser o mais fiel possível ao discurso dela e aproximar o espectador não de uma forma sexualizada, mas através da música, descontruindo a imagem do piano burguês e apresentado uma trilha sonora que traz samba, tango e até funk.”
Para Liane e Camila, o maior retorno de Meretrizes é a sensação de acolhimento destas mulheres. “Muitas delas trouxeram os pais, os filhos e os maridos para assistirem ao espetáculo e isso significa que se sentiram contempladas e respeitadas”, afirma a atriz. Camila completa explicando que Meretrizes é um teatro que nasce como documento para se transformar em experiência cênica, e a ideia é expandir o projeto para um diálogo com as profissionais das regiões Norte, Nordeste e Sudeste. “Queremos mostrar o contraste entre essas meninas de cada parte do país”, diz Liane.
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