Ah, o comportamento das crianças na plateia de uma sala de espetáculo… Elas conseguem nos fazer em pouco tempo perceber que não estão gostando nada-nada do que se passa no palco, como, ao contrário, podem declarar sua total aderência, por assim dizer, desde o primeiro minuto. Tudo tão transparente, tão sem filtro, tão espontâneo…
Na sessão de Vitalino, Teu Nome no Barro em que estive, no Sesc Pinheiros (era domingo, 10 de março, às 17 horas), as crianças da plateia foram chegando de mansinho à beira do palco e ficando ali, acomodando-se no chão, sem a menor cerimônia, com suas almofadas de ficarem mais altas na poltrona. Que poltrona qual o quê? O primeiro menino foi se deslocando, chamou os primos, depois se juntou uma garota, e outra, e outra. Formou-se uma fileira inesperada de crianças perto da atriz, sem invadirem o espaço cênico. No limite da boca de cena.
Isso acontece sempre no teatro infantil? Não. E por que se deu naquela sessão? Reação de criança não se explica, não é facilmente desvendável, mas talento de atriz, sim, isso se pode tentar explicar. Essas crianças sentiram confiança na força da personagem em cena, no acolhimento dela, no tom de voz, na cadência – os gestos, o não-verbal. Sem nenhum chamado explícito, a atriz “convocava” sua plateia para dentro do espetáculo, de forma plácida e afetuosa. Melhor dizendo: a atriz atraía a proximidade de sua plateia. As crianças foram.
Aquelas que ficaram em suas poltronas demonstraram de outra forma a adesão: queriam conversar com a atriz, respondiam até o que não era perguntado, se sentiram numa roda de histórias. Foi tão bonito de ver. Nós, adultos, cerceados por nossas regras de conduta e etiquetas de comportamento, ficamos ali, encantados, vidrados, completamente coadjuvantes daquela entrega absoluta entre uma intérprete e seus alvos mirins. Alguns pequenos mais afoitos a instavam durante o transcorrer das cenas, mas ela soube lidar, sem perder a linha, sem sair da personagem. Com afeto, que é como quase tudo se resolve na vida e na arte.
Elaine Buzato. Esse é o seu nome. Ela faz parte da Cia. Tempo de Brincar, criada em 2002. Se o relatado acima acontece sempre em suas peças? Não sei. Foi a primeira que vi dela. Mas acho que as chances são grandes. Talentos às vezes são natos, outras vezes são lentamente construídos, passo a passo, ano a ano, peça por peça. O que importa é que Elaine Buzato estava especialmente iluminada naquela tarde, com aquela plateia, com aquele texto, as canções, os adereços, tudo. Uma conjunção de felicidades faz desse Vitalino uma experiência bela e comovente.
A personagem deixa claro desde o início, por meio da letra da canção inicial, que ela não é de carne e osso. Ela é uma das “crias” de barro do ceramista, escultor, artesão e músico pernambucano Mestre Vitalino (1909-1963), cuja história de vida e arte é contada por ela no espetáculo. A canção diz: “ Sou cria da terra e feita de barro.” Valter Silva assina direção musical e composição da trilha sonora. Que brilhante.
São várias canções que ajudam a contar a história, como Meu Nome é Teiú ou Eu Sou Vitalino, que encerra o espetáculo numa espécie de síntese incrível. Tudo o que se passou no palco durante a peça está contido na letra dessa composição de Valter Silva: “bonecos feitos em barro, o riacho, a feira, a bandinha, cabaçal, vilarejo, quintal, boizinho, cirandeiras, caçadores, cangaceiros, retirantes, cachorro com teiú preso na boca, a lavadeira no seu colo severino”. E muito mais. O boi voador, caixinha de música, Maria Bonita no seu cavalo, pífanos, violeiras, mamulengos, teatro de sombras. Elaine serve até chá de mentirinha em bules e xícaras em miniaturas de cerâmica. Tudo foi pensado e realizado com muita delicadeza.
O figurino de Felipe Cruz remete às bonecas de barro – como as tais namoradeiras – à perfeição. Saia e blusa da mesma estampa, com apliques de flores bordadas, rendas e botões em alto relevo, com colar vistoso de bolas e o brinco combinando. E, claro, sandálias de couro, com crédito para Mestre Espedito Seleiro. Um refinamento de detalhes. Na cena do pífano, Elaine surge com outro figurino, que ela mesma criou para a peça: um terninho claro, com acabamento de renda no paletó e nas barras da calça. Bom gosto e mais delicadeza. E ainda tem uma roupa extra: a de Teiú, uma cabeça incrível, capa e bastão – tudo impactante, explorado com inteligência na decisão de ir dançar assim no meio da plateia, acalmando as crianças que até ali acreditaram tanto naquele vilão em forma de lagarto. Ponto alto é também a iluminação de Ana Matiê, sobretudo na cena final, com vários caixotes em cena, dispostos feito vitrines para a arte tão expressiva de Mestre Vitalino.
Quando a personagem vai falar de Deus, há o cuidado de falar também de Oxalá, o orixá maior, criador do universo para as religiões de matriz africana. Isso é fundamental numa peça que quer mostrar para as crianças a força de nossa ancestralidade, o barro como metáfora de toda gênese universal. Em peças assim, com texto tão bem escrito, não resisto a anotar algumas frases que me emocionam e que agora divido aqui, como forma de encerrar esse texto e essa minha total aprovação ao espetáculo da Cia. Tempo de Brincar:
– A terra onde a gente vive, a gente carrega para sempre dentro da gente.
– Vou vencer pela memória: contando histórias.
– Como não se esquecer das coisas? É só imaginar e ir dando forma às bonitezas do mundo.
– Aprender: a gente faz e refaz. Saber o que fomos, para saber o que seremos.
– Ei, meninada! O mundo não é. O mundo está sendo.
Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.