Em entrevista a este jornalista ao site Canal Teatro MF, irmão de essência do Infoteatro, em agosto passado, a atriz Denise Fraga evocou um trecho do monólogo Eu de Você, então em cartaz, para reafirmar sua crença nos palcos. “Eu confio no teatro. Olha, nós aqui, nesse pacto de foco comum. Se alguém ainda duvida de que estamos interligados, vai sair daqui com a certeza de que pelo menos alguma coisa nos une. Essa noite, essa noite de silêncio compartilhado”, reproduziu ela a fala que dava na peça, vista entre 2019 e 2023, pausada apenas na tragédia pandêmica.
Dona do discurso, a atriz continuou relacionando, durante a conversa, situações anteriores à chegada ao teatro que fazem deste evento algo único. “O que leva centenas de pessoas a escolherem o mesmo programa para aquela noite?”, perguntou. “Como elas foram até lá? De carro, de transporte coletivo, de Uber ou a pé? Quanto tempo demoraram até chegar”, prosseguiu. Como um espetáculo não nasce da noite para o dia, é bastante provável que Denise, naquele agosto de 2023, já estivesse impregnada pelas ideias ou até por fragmentos de cenas que resultariam em O Que Só Sabemos Juntos, seu novo espetáculo, em cartaz no Tuca, em São Paulo. Sob a direção de Luiz Villaça, que finalizou a dramaturgia coletiva junto de Denise e Vinicius Calderoni, a montagem é protagonizada pela atriz e por Tony Ramos, um dos maiores astros da nossa teledramaturgia, que volta ao palco depois de duas décadas em uma escolha surpreendente.
Surpreendente sim – e aqui não temos um clichê que, volta e meia, aparece nos textos jornalísticos –, porque nada em O Que Só Sabemos Juntos é fácil, previsível ou comum. O eterno galã, perdão, agora sim, pelo clichê, abraçou, aos 75 anos, algo bem diferente do que se imaginaria. Tão diferente quanto o Riobaldo da série Grande Sertão: Veredas (1985), o Tonico Ladeira da novela Bebê a Bordo (1988) ou o Manolo de Filhas da Mãe (2001), outro folhetim da Globo, representaram na sua carreira televisiva.
Desde a abertura das portas do Tuca, mais ou menos quinze minutos antes do horário marcado, Tony e Denise circulam pela plateia, conversam com os espectadores que se acomodam e vão, sem que ninguém perceba, colhendo informações para a apresentação da noite. Uma banda feminina, formada pelas instrumentistas Ana Rodrigues (piano), Clara Bastos (baixo), Grazi Pisani (trompete), Priscila Brigante (bateria) e Taís Cavalcanti (sax), sob a direção musical de Fernanda Maia, aquece o público e prepara a cama para a dupla deitar e rolar.
E são justamente algumas das perguntas lá do segundo parágrafo que dão início ao prólogo, mas a coisa começa a dizer a que veio quando Tony dispara: “E tem alguém que ainda não chegou aqui?”. “Sim, porque não é porque você está em seu lugar que chegou”, completa ele. Neste momento, O Que Só Sabemos Juntos se inicia de fato. Vem desta frase a raiz dramatúrgica para alcançar a identificação do público, divertir e emocionar.
Calma, O Que Só Sabemos Juntos poderia ser apenas mais um espetáculo politicamente correto para trazer à cena as reflexões necessárias sobre pautas urgentes. É e não é. Tem muita coisa ali, mas tudo está estruturado em uma elaborada dramaturgia, dois ótimos atores representando personagens mesmo quando não parecem estar e os assuntos não são trazidos como palestra e sim como parte de uma história que quer ser contada.
No esqueleto da montagem aparece um casal, marido e mulher, em uma fase ruim da relação, à beira do colapso e norteada por uma necessidade infantil de humilhação mútua. Uma hora, a mulher dança no meio da sala e o homem reclama que estão atrasados para um compromisso. Em outro momento, o marido liga o som alto e ela manda baixar porque não consegue concentração para o trabalho. A conversa não chega, nunca dá tempo, a bomba explode.
Antes, porém, da catástrofe iminente, Tony revela memórias de infância do bairro em que viveu na zona norte paulistana e evoca a paixão pelo cinema através dos filmes do comediante Oscarito (1906-1970). Em uma homenagem, de repente, ele é Oscarito, e Denise surge no lugar da atriz Eva Todor (1919-2017) na reprodução da famosa cena do espelho da chanchada Os Dois Ladrões (1960). Denise também volta no tempo – ou recorre um pouco à fantasia, quem sabe – para falar do subúrbio carioca em que foi criada, das voltas pela cidade a bordo do carro do tio taxista e das lembranças de casa, no amplo sentido da expressão.
Por esta altura, as conversas com o público na entrada do teatro já se integraram ao texto. Tony narra situações ouvidas há pouco e puxa mais revelações dos espectadores. Denise faz o mesmo. A plateia está dentro do espetáculo e aquelas entrevistas prévias, comuns aos processos de construção, são feitas na hora e incorporadas ao roteiro.
Em uma das cenas mais bonitas, Tony interpreta o velho pai que precisa abandonar a casa e a padaria que cuidou por mais de 40 anos porque as estruturas dos imóveis estão condenadas devido ao impacto de uma calamidade ambiental. É Brumadinho, é Maceió, é Porto Alegre. Denise, por sua vez, puxa sonoras risadas com o monólogo dos boletos, sobre as contas mensais que perseguem a todos, e aborda o machismo e a opressão, com delicadeza e teatralidade, através da história de uma mulher que adorava dançar, mas sempre se adaptou ao ritmo dos parceiros, mesmo quando os passos deles pareciam errados.
Fica difícil explicar O Que Só Sabemos Juntos sem descrever boa parte do que é visto. Para usar uma das palavras da moda, é muito mais que uma peça, é uma experiência que reúne um conjunto de elementos do teatro e de outras expressões artísticas combinadas em busca de uma comunicação com o público. Como encenador, Luiz Villaça é essencialmente um diretor de cinema que se desafia a criar quadros com um extremo cuidado ao conjunto e não pensando em imagens fechadas típicas do audiovisual. O fundo branco e as cadeiras do cenário de Duda Arruk, os figurinos casuais de Verônica Julian e a luz desenhada por Wagner Antônio endossam a estética que parece minimalista, mas não é.
Marido de Denise há três décadas, Villaça é responsável por filmes como Por Trás do Pano (1999), Cristina Quer Casar (2003) e De Onde eu te Vejo (2016), além de bem-sucedidas séries de televisão, a exemplo de Três Teresas, do GNT. O teatro como profissão deve ter chegado ao seu currículo por amor à parceira no começo da década de 2010 e dirigiu os espetáculos A Descida do Monte Morgan, Sem Pensar, A Visita da Velha Senhora e Eu de Você, os três últimos protagonizados por ela.
O cinema e a televisão se mostram evidentes na condução de Villaça e da melhor e mais moderna maneira possível. O ritmo da montagem é leve, como se a dupla de atores improvisasse sem preocupações e uma câmera estivesse disponível para captá-los em qualquer de suas ações e emoções. Se a dramaturgia não é engessada, a direção não poderia ser diferente, e essa fusão de estéticas é fundamental para a fluência das cenas e pelo impacto sentido pelo público de ver algo diferente, algo que o sacode de algum jeito.
Sob este ponto de vista, a participação de Tony Ramos é fundamental para o diálogo de sensações e linguagens. Embora tenha feito teatro no começo da carreira, o ator virou presença esporádica nos palcos a partir da segunda metade da década de 1970, o começo da consagração na Globo. Duas peças nos anos de 1980, outras duas nos de 1990, a brilhante Novas Diretrizes em Tempos de Paz, de Bosco Brasil, sob a direção de Ariela Goldmann, apresentada entre 2002 e 2004, em uma contracena perfeita com Dan Stulbach, e só.
Os olhos do público enxergam um ator de televisão, talvez o maior deles na televisão, que concede a honra do ao vivo e sua disponibilidade para transitar por diferentes registros no palco. Tudo comprado pela plateia sem questionamento algum. Quase o mesmo vale para Denise, sob uma perspectiva inversa. A atriz já persiste fiel a esse pacto com a plateia desde os anos de 1990, e raras são as lembranças guardadas pelo público de suas aparições na televisão.
Para consolidar esta química, esta alquimia, grita a assinatura do dramaturgo Vinicius Calderoni, que consolidou o texto junto de Villaça e Denise. Escritor, músico e autor de teatro, Calderoni, de 38 anos, é sobretudo jovem – sim, para os padrões do teatro atual, nesta idade ainda pode se dizer que é bastante jovem.
Suas narrativas fragmentadas, bem aplicadas nas peças Os Arqueólogos, Chorume e no musical Elza, trazem características de quem aprendeu a escrever – e, talvez, consumir cultura – em um tempo em que já se pensava diferente. São frases picadas, citações de números e mais números e alguns vai-e-vem de situações que não resultam nada confusos porque estão inteligentemente conectados a uma linguagem de internet que, com o tempo, todos aprenderam a utilizar.
Denise Fraga e Luiz Villaça, na porta dos 60, já entenderam que é hora de buscar um novo teatro. Isso não significa renegar os clássicos – pelo contrário, um lindo e atualíssimo trecho de Tio Vânia, do Anton Tchekhov, é lido por Tony em cena – e, muito menos, tentar roubar a atenção do espectador com pirotecnias, algo já antigo. É mostrar de novo ao público que teatro é legal, é divertido, é emocionante.
Para teatro ser legal, é fundamental um bom texto e bons atores. Então, não precisa falar mais nada, até porque Tony Ramos, setentão, entendeu onde estaria se metendo quando viu Eu de Você e surpreendeu Denise e Villaça, em meio a um jantar, com a provocação de que queria trabalhar com eles. São coisas que nós, espectadores ou artistas de teatro, só sabemos quando estamos juntos.
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