“Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês. A noiva o caubói era você, além das outras três Eu enfrentava os batalhões, os alemães e seus canhões. Guardava o meu bodoque e ensaiava o rock para as matinês.” Essa brilhante letra de Chico Buarque para a música João e Maria acerta em cheio, como poucas vezes vi, na descrição de duas crianças brincando, melhor, inventando brincadeiras, uma atrás da outra. Crianças fantasiosas, imaginativas, livres, como deveriam ser todas as infâncias.

Dito isso, conto que Quim & Tal, em cartaz até o fim do mês nos fins de semana do Sesc Ipiranga, em São Paulo, tem essa mesma proposta da letra da conhecida canção, embora a peça não tenha diretamente se inspirado nela (não que eu saiba). Dois personagens, um chamado Quim e outro chamado Tal, brincam o tempo todo em um quintal – uma brincadeira após a outra, sem parar, sem perder o fôlego. Só que não são duas crianças (pela idade cronológica, ao menos). São dois veteranos palhaços – idosos, vividos, experientes. Dois amigos clowns que, como se descobre ao final, vivem de procurar quintais abandonados, cheios de brinquedos esquecidos pelas crianças.

A direção de Cris Lozano não perde a mão da agilidade em nenhum trecho, afinal, brincadeira requer energia, requer disposição e vitalidade, ainda que sejam dois personagens idosos. É uma direção que também brinca com o jogo de duplicidade, fazendo muitas vezes parecer que os dois são um só – ou poderiam ser. Saudável recurso para intrigar as crianças. Esse jogo ambíguo do duplo é facilitado por cenografia (Sidnei Caria) e figurinos (Tetê Ribeiro), que espertamente contribuem como podem para a aproximação entre os dois personagens.

O grupo Maracujá Laboratório de Artes, responsável por esta montagem, completa, em 2025, 20 anos de trajetória. Ademais, há um atrativo extra para quem acompanha o circuito paulistano de teatro para crianças: ver, mais uma vez juntos, os incríveis atores Sidnei Caria e Guto Togniazzolo, que tantas vezes já nos emocionaram com suas produções dedicadas ao horário vespertino de censura livre. São dois nomes que representam pura resiliência e resistência nesse cenário muitas vezes dificultoso que é fazer teatro para crianças em nosso País. Há, portanto, durante a peça toda, essa camada de emoção por vê-los com uma lente maior. Pois Sidnei e Guto entram em cena com toda essa bagagem de amor e dedicação longevos ao público mirim – e isso inevitavelmente comove.

Sidnei Caria é autor da dramaturgia. Sempre um craque, se destacou ao longo dos anos sobretudo pelas adaptações criativas que fez de livros do autor Michele Iacocca, como Rabisco – Um Cachorro Perfeito; As Aventuras de Bambolina e Nerina – A Ovelha Negra. Aqui, em Quim & Tal, foi com tudo na direção do texto memorialístico, afetivo e até documental, recheando apropriadamente as cenas de dezenas de referências a filmes, desenhos animados, seriados antigos, personagens emblemáticos das crianças de hoje e de sua geração. Acertou de novo.

Só senti falta de mais humor, de ouvir a plateia dando risada, já que se tratam de dois personagens de palhaçaria. Há alguns poucos tombos (infalíveis para riso), mas o texto, no geral, se apoia mais na emoção contida do que no humor desbragado. Uma dosagem mais equilibrada entre essas duas vertentes poderia resultar mais rica para o público, mais temperada, mais balanceada. Do jeito que está, a peça fisga não pelo humor, mas pela viagem lúdica, acionada nas memórias de cada um de nós. Não é pouco.

E essa viagem frenética de brincadeiras consecutivas é disparada a partir da presença cenográfica de um simples varal de roupas. Chega a ser um comovente jeito artesanal de fazer teatro para crianças. Poucos elementos, mas plenos de ressignificados. O infalível pano azul vira mar. O lençol branco evoca fantasminhas e ainda serve de tela para as competentes cenas de teatro de sombras, especialmente dirigidas por Lucas Luciano. Junte-se a isso singelas canções originais, cantadas ao vivo pelos dois versáteis atores e compostas também por Caria, com produção musical e efeitos sonoros de Piva Silva.

Uma peça assim não poderia deixar de homenagear nomes que consolidaram a força do teatro para crianças no Brasil, como Ilo Krugli, Maria Clara Machado, Lúcia Benedetti, Tatiana Belinky e Vladimir Capella. A simples menção a esses nomes, pelos dois personagens, também dispara no público outros tipos de evocações e memórias teatrais. Lindo. Para arrematar tudo, Sidnei e Guto terminam na boca de cena indagando os adultos sobre o quanto eles brincam hoje com suas crianças. Tudo de muito bom gosto, sem agressividade, muito bem controlado pela direção da peça. Leveza e suavidade dominam este momento, combinando com a doçura conhecida dos dois intérpretes. Vamos com eles (re)habitar nossos quintais?