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Foto: Ronaldo Gutierrez
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“Tio Vânia”, do Grupo Tapa, é contemporâneo por essência e não faz esforço para ressaltar o evidente

Sob a direção de Eduardo Tolentino de Araujo, o espetáculo desafia o público ao levar ao palco o texto de Anton Tchekhov na íntegra

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

É louvável a capacidade do diretor Eduardo Tolentino de Araujo, junto ao Grupo Tapa, de resistir às correntes que volta e meia se tornam coercitivas no teatro brasileiro. A montagem de Tio Vânia, do russo Anton Tchekhov (1860-1904), em cartaz no Sesc Santana, não parece em nada uma produção levantada em 2024. Assim, Tio Vânia, como espetáculo, não é perecível, graças à segurança de Tolentino quanto ao lugar que ocupa no teatro brasileiro e ao seu descompromisso em ressaltar temas considerados obrigatórios e conectados com as pautas atuais.

Até porque em Tio Vânia, o encenador sabe e o público que se esforçar um pouco também percebe, nada disso é necessário. Tudo parece anacrônico, lento demais, fora do esforço promovido por artistas e produtores para agradar ao público e aos curadores e, algumas vezes, realmente é. Em nenhum momento, Tio Vânia busca parecer contemporâneo – até porque ainda é – ou acessível para quem escolheu apenas um programa de fim de semana.

O texto, escrito em 1896, ganha o palco na íntegra, sem a edição que os clássicos costumam sofrer e, muitas vezes, têm cenas inteiras decepadas. O Tio Vânia do Tapa dura mais de duas horas sem intervalo – na noite de estreia, beirou os 150 minutos, para ser exato. É, por vezes, cansativo? É. Não estamos acostumados a ficar tanto tempo sentados em uma poltrona sem acesso às ferramentas que viciaram nossa atenção. Mas o diretor, fiel aos seus princípios, banca essa escolha e oferece aos espectadores um Tchekhov como Tchekhov imaginaria. Se o público, não comprar a ideia, o problema é dele. Cabe ao artista a provocação.

Foto: Ronaldo Gutierrez

Há 45 anos, o Grupo Tapa, coletivo formado no Rio de Janeiro, profissionalizado em 1979 e sediado em São Paulo desde 1987, faz um teatro considerado por alguns como “careta”, mas é graças a essa firmeza que Tolentino sobrevive a ondas capazes de afogar muitos surfistas. Passou ileso pelo teatro político pós-abertura, pela comédia besteirol, pelo frisson da dramaturgia visual de Gerald Thomas ou do barroco de Gabriel Villela, atravessou o stand-up e, hoje, enfrenta a dominação das peças confessionais, discursivas e identitárias.

O Tapa montou os maiores dramaturgos brasileiros e estrangeiros, de Nelson Rodrigues a William Shakespeare, de Plínio Marcos a August Strindberg, e, em relação a Tchekhov, está na terceira investida presencial. Em 1998, levou ao palco Ivanov e, em 2019, foi a vez de O Jardim das Cerejeiras, sucesso de crítica e público, que lotou quatro sessões semanais por cinco meses consecutivos no Teatro Aliança Francesa, em São Paulo. Durante a pandemia, Tolentino ainda dirigiu versões on-line de O Urso e Um Pedido de Casamento.

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Mas O Jardim das Cerejeiras é, digamos, uma peça mais fácil de agradar as plateias. Tem viradas em sua trama, personagens contrastantes e um ritmo próximo ao do folhetim que rende dinamismo. Tio Vânia é uma peça lenta, mostra seres entediados e até entediantes, o público precisa se esforçar um pouco para comprar tantas crises existenciais.

Tio Vânia, em tradução do próprio Tolentino, trata dos arrependimentos em torno das opções de vida, do machismo, da opressão contra a mulher, de sustentabilidade, da devastação da natureza em nome do progresso e da exploração do trabalho. Será que tudo parece tão velho assim?

Na trama, Vânia (interpretado por Brian Penido Ross) é um proprietário de terras no interior da Rússia que já trabalhou, trabalhou muito, mas, agora, só come, dorme, dorme e come, além de beber um pouco. Sabe aquele tio do pavê? Foi nisso que ele se transformou. É um velho debochado, irônico, que diverte as pessoas por algum tempo, mas, depois, perde a graça. Fica visível que tudo não passa de disfarce para melancolias e frustrações.

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Desde que ele se cansou da labuta é Sônia (papel de Anna Cecilia Junqueira), a sua sobrinha, quem trabalha duro nas lidas da fazenda. Sônia parece feia, magra demais, com o cabelo descuidado, anda se arrastando. O que ela teria mais para fazer da vida mesmo? Sônia gosta do Doutor Astróv (vivido por Bruno Barchesi), o médico da região, idealista, defensor da ecologia e apreciador de uma boa vodca. Só que ele nem enxerga a moça, no máximo vê nela uma amiga gentil e simpática.

A chegada do Professor Serebriakov (defendido por Zécarlos Machado) e sua bela e jovem mulher, Helena (representada por Camila Czerkes), que moram na cidade grande, transformou a rotina da casa e colocou todos em conflito. A Babá (papel de Walderez de Barros) reclama de que o almoço passou a ser servido quase às cinco da tarde e querem tomar chá até de madrugada.

Serebriakov é pai de Sônia e seu charme intelectual que seduziu a falecida irmã de Vânia desapareceu em meio a tanto egocentrismo. Sua ex-sogra, Maria (papel de Lilian Blanc), a matriarca da propriedade, é a única que ainda se impressiona com o ex-genro. A elegância de Helena, porém, quebrou o tédio da fazenda, despertando paixões e invejas. Astróv e Vânia mal seguram o queixo diante de sua beleza. Sônia não disfarça a antipatia, mas gostaria de se aproximar dela e do espelho que a ilumina.

Nos últimos anos, começou uma reflexão em torno das possibilidades de atualização dos clássicos, desde a inserção de elementos contemporâneos até as alterações nos desfechos ou nos destinos dos personagens. Discussões contraditórias, não? Porque se clássica virou, a obra continua dialogando com os tempos atuais.

Muitas falas de Tio Vânia parecem escritas nos dias de hoje. A cena em que Astróv estende um mapa no chão e localiza os pontos de devastação das áreas verdes pode ser facilmente associada ao desmatamento da Amazônia ou as enchentes do Rio Grande do Sul. O diálogo entre Sônia e Helena, em que a visitante confessa a vontade de tocar piano, mas precisa pedir a permissão de Serebriakov – que nega –, pode até parecer datada. Será?

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O Tio Vânia do Tapa é um teatro de dramaturgia e de personagens e isso oferece oportunidades raras para atores e atrizes viciados em uma estética contemporânea que normalizou borrar os limites entre um e outro. Brian Penido Ross atinge um grande momento no papel-título, evoluindo com maestria do deboche para a frustração, chegando até a raiva no final, quando o personagem evidencia uma reação.

Surpreendente escalação de Tolentino, Anna Cecilia Junqueira amplia os significados de Sônia. A intérprete, com seus traços delicados e harmoniosos, canaliza o perfil desprovido de encanto da personagem com uma postura curvada e uma secura na voz que lima qualquer doçura em um apurado trabalho de composição. Camila Czerkes sublinha a beleza de Helena sem cair na cilada da sensualidade, pelo contrário, ela é mais fechada, visivelmente insatisfeita e até conformada com a submissão ao Professor Serebriakov – o que conota uma insegurança.

Como Serebriakov, Zécarlos Machado é cínico, aquele farsante que enganou por muito tempo, um boa-vida. “Com a doença a gente se habitua, mas digerir a vida no campo é complicado”, diz ele, na hora da partida, percebendo que a fonte secou. Fechando o elenco central, Bruno Barchesi constrói Astróv entre o bom-mocismo e uma interiorização desencantada, o que aumenta a complexidade do médico porque ele é o personagem politicamente correto. Participações luxuosas, Walderez de Barros, Lilian Blanc e Tato Fischer, que também assina a direção musical e a trilha sonora, completam o elenco em aparições pontuais e fortes que reforçam a exigência da companhia em relação ao conjunto.

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Diante disso, o Tapa mostra que de careta não tem nada, porque caretas trilham o óbvio, não contestam ou quebram barreiras e, com Tio Vânia, Eduardo Tolentino de Araújo faz o que considera que deve ser feito. Parte da plateia pode não gostar, muitos provavelmente terão dificuldade de digerir, quem sabe vão até cochilar, mas levantar um Tchekhov com tamanha fidelidade e tais características é de uma coragem respeitável.

No programa do espetáculo, uma frase da peça, o trecho de uma conversa entre Astróv e a Babá, define o conceito do espetáculo: “Será que os que virão depois de nós, daqui cem ou duzentos anos, e para quem abrimos caminhos, vão falar bem de nós?”. Eduardo Tolentino de Araujo e os vários elencos que passaram pelo Grupo Tapa ao longo destes 45 anos de trajetória estão aqui para isso.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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