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‘Tom na Fazenda’ conquista público e crítica e ganha protagonismo no cenário teatral

Coluna Por Natália Beukers

“Como ‘Tom na Fazenda’ se tornou um fenômeno e um marco do teatro brasileiro”;
“Rodrigo Portella dirige Tom na Fazenda: Um momento de teatro de exceção”;
“Trupe brasileira ganha corações e mentes na França.”

Estas foram algumas das manchetes a respeito da peça Tom na Fazenda – cujo título, depois de assistir ao espetáculo, ainda parece não explicar tudo que se viu. Imaginem a importância que isso tem para o teatro nacional…

Lama, isso mesmo, muita lama, compõe o cenário minimalista da montagem, somado a um pequeno, mas afiadíssimo, elenco, com um texto verdadeiramente instigante. Estes são os elementos que compõem esse retumbante sucesso internacional do nosso teatro.

Para quem ainda não ouviu falar de Tom na Fazenda, trata-se de peça que estreou em 2017 – já passou de 300 apresentações –, baseada na obra Tom à la Ferme, do autor contemporâneo de origem canadense Michel Marc Bouchard, que não hesitou em reconhecer ser essa a melhor montagem de seu próprio texto.


Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues — Foto: Victor Pollak / Divulgação

Idealizada pelo ator e produtor Armando Babaioff (27 anos de carreira no teatro e audiovisual. Seu último trabalho na televisão foi na novela Bomsucesso, da Rede Globo), que também assina a tradução, a peça é dirigida por Rodrigo Portella. No elenco, com interpretações que merecem ser vistas, estão Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary, além do próprio Babaioff.

Desde o início, a peça fez muito sucesso por onde passou. O autor, Bouchard, levou a montagem brasileira ao Festival TransAmériques (FTA), em Montreal, no Canadá – um dos festivais de teatro contemporâneo mais importantes da América do Norte (o texto em português é reproduzido em um letreiro, como as legendas de um filme). Nessa ocasião, o elenco foi surpreendido com 12 minutos de aplausos… Conseguem imaginar este feito? Mas, acontecimentos ainda mais grandiosos estavam por vir… A peça foi também encenada no Festival d´Avignon, na França, um dos principais festivais internacionais do teatro mundial.

A montagem foi aclamada em solo francês, tornando-se um dos grandes destaques do Festival, entre outros 1.700 espetáculos, o que culminou em uma temporada em Paris, no Théâtre Paris-Villette, atraindo o melhor público da casa dos últimos 20 anos. Sobre a temporada, o jornal francês Libération escreveu: “É raro ver uma encenação ser ovacionada de pé todas as noites e uma atuação alucinante de seus atores, que fazem um trabalho incrível de interpretação.” O jornal La Terrasse, confirmou: “Dirigida por Rodrigo Portella, esta versão teatral brasileira de uma beleza violenta, beirando o sublime, é um momento excepcional do teatro. Uma experiência teatral dessa ordem é rara.” E, ainda, o grande Le Monde assegurou: “Tom na Fazenda é uma peça importante do repertório contemporâneo”, referindo-se à montagem brasileira.

O espetáculo vencedor dos prêmios da APCA, Associação de Críticos de Teatro de Quebec, Shell, Cesgranrio, APTR e Questão de Crítica, trata da história de um publicitário, Tom (Armando Babaioff), que vai à fazenda da família de seu falecido companheiro para o funeral. Ao chegar, descobre que a sogra (Soraya Ravenle) nunca tinha ouvido falar dele e, tampouco, sabia que o filho era gay e que mantinha esse relacionamento. Nesse ambiente rural e austero, Tom é envolvido numa trama de mentiras criada pelo truculento irmão do falecido (Gustavo Rodrigues), estabelecendo com aquela família relações de complicada dependência. É um thriller psicológico, como disse Babaioff.

Tive uma conversa inspiradora com os artistas Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues sobre Tom na Fazenda, confirmando que o teatro nacional, pela sua potência, tem muito a oferecer a espectadores de todo o mundo. Confiram a seguir:

Vogue: Como é, hoje, no Brasil, ser um fenômeno teatral e quais as consequências práticas disso?

Armando Babaioff: É tanto trabalho, tanta prospecção… Chega a ser antagônica a sensação de fazer uma peça com uma repercussão como essa. Nos encontramos no lugar da realidade brasileira para todos os artistas, a realidade dos patrocínios, de editais públicos, de espaços escassos para se apresentar. Não podemos falar da peça sem antes falar de sua trajetória e do contexto no qual estamos inseridos. Tom na Fazenda estreou em 2017 – começamos a ensaiar em 2016. A Dilma era presidente, ela foi deposta, entrou Michel Temer e nós estreamos em março. A peça nasceu nesse cenário, não podemos deixar de registrar este dado, pois isso diz muito sobre a carreira do espetáculo, a intensidade, a potência e energia que foram depositadas nesse projeto. Somado ao fato da ascensão da extrema direita ao poder, os editais foram minguando, salas de espetáculo foram fechando, o público foi deixando de ir ao teatro, e, além disso tudo, tivemos, na sequência, uma pandemia, que deixou a classe teatral parada quase que completamente… E, nesse cenário brasileiro, a gente percebeu que o espetáculo dialoga com o momento presente. É um fator dominante para a peça, que conversa, também, com as minhas questões pessoais, razão pela qual quis colocar esse texto em cena e tenho tanta energia em contar essa história. E por ser teatro, trata-se de um reencontro meu, e da nossa trupe, com o “fazer teatral”. Um reencontro com o ofício, de repensar a profissão de ator. No final das contas, nós somos operários desse ofício e pouco desfrutamos desse lugar do sucesso. O texto de Tom na Fazenda, a nós, parece escrito para o Brasil, e não Montreal. Ele consegue absorver muitas questões da nossa sociedade, uma peça que questiona o patriarcado, em que discutimos uma dubiedade de discursos e a questão da homofobia, que está entranhada na peça.


Armando Babaioff — Foto: Victor Pollak / Divulgação

Gustavo Rodrigues: É muito prazeroso termos o público junto conosco; estarmos sempre com a plateia lotada. Quanto a essa denominação de fenômeno, podemos olhar o quanto é pertinente, hoje, o argumento desta obra. Também há uma linguagem compreendida pelos atores… São engrenagens muito interessantes e que funcionam. É um espetáculo que trabalha para a criação e formação de plateia, o que é fundamental para a nossa existência. Por mais que tenhamos inseguranças, de para onde este projeto vai, temos a alegria de termos público e, como artista, ser escutado sobre aquilo que escolheu dizer, é muito potente. Temos um envolvimento tão grande com esse projeto que se tornou uma missão de vida… O Tom na Fazenda, nesse momento, atravessa nossas vidas como a coisa mais importante que temos a dizer. E é muito caloroso, diante disso, termos esse retorno do público. Nesse sentido, sim, é um fenômeno, podermos ter tantas pessoas nos assistindo.


Gustavo Rodrigues — Foto: Victor Pollak / Divulgação

AB: Não é uma peça que exclui o público. Ela comunica, inclusive, com as pessoas que nunca foram ao teatro. A peça coloca o público em um lugar ativo diante da história encenada. E, claro, que só temos o resultado de hoje pela quantidade de vezes que essa peça foi encenada ao longo desses seis anos; aí você consegue apurar o trabalho e trazer para cada vez mais perto de você.

Para mim, a peça é uma referência para as novas gerações de atores. O que pensam a esse respeito?

GR: Senti muito isso quando era jovem. Muitos trabalhos de atores e atrizes me comoveram e serviram de guia para um objetivo a ser conquistado. Tecnicamente, tem uma coisa interessante em nosso trabalho, uma característica que pode ser adquirida como ator, de conseguir se esquentar por dentro, saber manter uma vibração constante, mesmo no silêncio… Isso permite ter uma presença muito forte em cena. É exatamente aí que eu gostaria de chegar em minha trajetória artística! São 28 anos de trabalho buscando e elaborando como podemos dominar, tecnicamente, a respiração e a pulsação cardíaca a serviço de nos deixar plenos e vivos no palco. É como se tivesse uma atração, o público não consegue se desconectar do que é visto. E isso, não é apenas um acerto, não… É produto de técnica, fruto de muito trabalho. Vi Ricardo Blat, Denise Stoklos, Andréa Beltrão, Fernanda Montenegro, muitos artistas fazendo trabalhos que nos deleitavam, em relação a essa conexão entre atores e plateia…

AB: Além disso, o texto é muito bom, muito bem escrito. É preciso ter uma boa dramaturgia para que isso seja passível de sustentação.

GR: Acho que como produtor-ator, pensando na carreira de ator de teatro, a coisa mais importante é você ter um bom texto em mãos. É o começo de tudo, ter algo muito potente para dizer, para contar. Estou falando para quem está pensando em se produzir, em viabilizar a carreira, porque ficar esperando convite é muito complicado. Acho que o Tom na Fazenda também é um exemplo maravilhoso de empreendedorismo e de escolhas em relação ao caminho de carreira que o Babaioff escolheu.

Cena de ‘Tom na Fazenda’ — Foto: Victor Pollak / Divulgação

AB: Um dos maiores exercícios foi pensar: Como mantemos essa peça em cartaz? Que peça está em cartaz desde 2017, com essa quantidade de apresentações, sendo um drama? Ao mesmo tempo que temos uma pérola nas mãos, tivemos de parar para pensar como viabilizar financeiramente esse projeto. O grande desafio do Tom na Fazenda também foi sua manutenção. Tem um exercício de entendimento desse produto, que considero um dos segredos de toda essa trajetória. Quem está de fora, não faz ideia do “corre”, da “ralação” que está sendo tudo isso. Para o ano que vem, por exemplo, já teremos apresentações na França, Bélgica, Suíça e Portugal.

GR: Sim… também é um exercício diário de honrar e respeitar o lugar a que a peça chegou. É a prioridade das nossas vidas, e há uma relação de respeito e cuidado entre todos os integrantes deste projeto. A relação é muito intensa. É uma espécie de artesanato das relações.

Quais as diferenças em apresentar a peça em diferentes partes do mundo?

GR: São muitas as diferenças…

Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues — Foto: Victor Pollak / Divulgação

AB: Sabe de uma coisa…, estou sentindo os teatros mais cheios que os cinemas e isso tem me deixado curioso. Sinto que as pessoas estão realmente indo ao teatro, que é uma experiência insubstituível. Você pode acessar telas em qualquer lugar da sua existência, no celular, no computador, na televisão. Teatro, não. O teatro ainda é esse museu da humanidade, um lugar que você precisa ir para ver gente de verdade vivendo alguma coisa, isso é único, sempre um acontecimento inédito. Qualquer coisa fora essa experiência é através de telas, filtros, photoshop, direção de imagem. O teatro é o mais arcaico dos fazeres artísticos, que precisa de muitos elementos para acontecer. Óbvio que o mais básico é a relação entre público e atrizes/atores, como falamos anteriormente. Mas uma coisa é fato: a peça se comunica com o público nos mais diversos lugares. Não é preciso ser gay para se identificar com o que acontece ali, pois a peça fala sobre humanidade, sobre relacionamentos humanos e familiares, que são pertinentes a todos. Todas as dificuldades que temos na vida, de dizer o que queremos dizer ao outro, nossas verdades, é disso que a peça trata e revela. No caso, o autor escolheu falar sobre tudo isso, a partir da sexualidade. Quando você apresenta essa peça no Rio de Janeiro, ela bate de uma maneira; quando você vai para o interior do estado, ela bate de outra. Da mesma forma, quando você vai para Ribeirão Preto, Paris ou Avignon. Isso é um barato, pois os risos vão para lugares diferentes, assim como os silêncios. O que choca, choca diferente.

Pessoalmente, o que mais afeta vocês no texto?

GR: Para mim, é a questão da discriminação. Tem-se uma ideia do que é certo no mundo e queremos implementar isso em toda a sociedade. Mas o que mais me pega é quando a agressão é a partir dessa visão discriminatória, que fuja de algum padrão imposto. A questão da liberdade que o texto aborda é a que me atravessa. Me dá muito prazer, enquanto artista, estabelecer essa discussão.

AB: No prefácio do texto da peça – o autor gosta de escrever prefácios em todas as suas peças – se lê: “Todos os dias, jovens gays são vítimas de agressão na escola, em casa, no trabalho, em campos de jogos, tanto em áreas urbanas como rurais (…). Homossexuais aprendem a mentir antes mesmo de aprender a amar.”. É sobre isso… Quando leio essas frases entendo por que tenho que fazer essa peça. O cerne é esse. É uma peça que fala sobre as intolerâncias, limites, afetos, ou a falta deles, sobre o lugar do opressor e do oprimido, do submisso e do dominador; o tempo inteiro estamos trocando esses papéis. A natureza dessas personagens vai se alternando, deixando-se influenciar umas pelas outras. Isso é uma metáfora da humanidade; não existe ninguém cem por cento mal ou bom, com uma única faceta. Todos somos diversos. Isso permite que o público se pergunte: onde mora isso em mim? Onde consigo encontrar empatia pelo algoz? É um momento mágico onde nosso imaginário encontra o imaginário da plateia, tornando-se diálogo.

Como é a preparação para entrar em cena? E como se sentem depois da peça?

GR: É aguentar as dores (rs)… E saber respeitar os limites do corpo. Porque a peça exige muito fisicamente. Emocionalmente, acho que é mais no campo da técnica, isto é, como potencializar essa energia tecnicamente, por mais que seja uma doação. Isso é mais forte do que se abater emocionalmente; isso não tem. Trata-se realmente do esgotamento físico. Quando acaba a peça são quatro, cinco horas, para poder abaixar a adrenalina e conseguir descansar. É como o trabalho de um atleta. Em Avignon, em que fazíamos todos os dias, e descansávamos apenas na segunda-feira, tivemos que tomar alguns suplementos alimentares para segurar a musculatura…

Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues — Foto: Victor Pollak / Divulgação

AB: A peça exige muito da gente e ela tem exigido cada vez mais…, pois quando comecei, tinha 36 anos e agora estou com 42. As dores vão sendo cada vez mais percebidas… Ela exige muito da minha voz também. De tudo que já vivenciei na minha vida e de todas as peças que fiz, trabalhos no audiovisual também, não há nada igual a Tom na Fazenda. Ela supre todas as minhas necessidades como artista, pelas possibilidades de jogo… A peça passa por todos os lugares que um ator gostaria de experimentar em cena. É como um parque de diversões. O que mais eu posso querer? Estou vivendo este momento, e isso me dá tanto prazer, tanta felicidade, que digo sempre que são as duas horas e meia mais felizes da minha vida. É um lugar que me tira qualquer outro tipo de pensamento que não só aquele, é um “hiper foco”. Há momentos em que eu e o Gustavo [Rodrigues] falamos em cena: “Olha, está bastante escorregadio ali, presta atenção. Estou cansado. Calma, segura”… Quando a peça termina discutimos sobre ela como se fosse uma partida de futebol! Tenho consciência de que precisamos aproveitar cada segundo, cada instante de tudo isso.

GR: Você nos pediu uma novidade no começo da entrevista [em razão do número de entrevistas já realizadas] … Então vou dividir algo que me permeia há muito tempo, desde que comecei a estudar teatro. É uma frase de [Anton] Tchekhov, em A Gaivota: “O importante não é a glória, não é o brilho, não é aquilo com que eu tanto sonhava, mas sim a capacidade de suportar. Saber carregar a cruz e ter fé! Eu tenho fé e, assim, não sofro tanto e, quando penso na minha vocação, já não temo a vida.”. Enfim…, é nossa cruz de cada dia, que carregamos ali no palco.

***

Uma observação que muitos espectadores têm ao final da peça, é que os atores agradecem com as mãos voltadas para a plateia… Por que fazem isso todas as noites? Em nossa entrevista, fiz essa pergunta a eles, ao que Babaioff me devolveu o questionamento: “O que significa para você?”. Para mim, trata-se, justamente, do reconhecimento pela troca de energia entre público e elenco, que é concretizada naquele momento. Ali, em meio aos aplausos, esse ciclo tão potente se fecha. Trata-se de reverência a algo sagrado que está na essência do teatro: a reverência dos atores diante de uma plateia que se deixou conduzir por aquela história humana. O teatro é um artesanato e, naquele instante, vemos as mãos dos artesãos que construíram a obra. Arrebatador.

Viva o Teatro brasileiro, viva Tom na Fazenda e estes artistas magníficos!

Uma dica: Escutem a música tema da peça, Loca, de Chico Trujillo. Muito boa…

 

A peça será encenada, em 2024, no Festival de Edimburgo, o maior festival de teatro internacional, que acontece na Escócia. Além disso, haverá turnê pelo norte e nordeste do Brasil a partir de setembro.

Tom na Fazenda: Teatro VIVO – Avenida Chucri Zaidan, 2460, Morumbi, SP. Até 23/07

Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.

 

Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Cultura’. Para acessar a publicação original, clique aqui.

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Sobre
Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz, criadora do Infoteatro e colaboradora de Cultura da Vogue Brasil, tendo escrito mais de 50 textos até então. Formada em Direito pela PUC-SP (2020), começou a estudar teatro aos 10 anos de idade, formando-se como atriz em 2017. Estudou, de 2017 a 2021, com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos do grupo: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”. Foi assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. A partir da criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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