Uma tendência atual do teatro para crianças – ainda que não seja novidade de forma alguma na história dessa arte de censura livre – são os monólogos apoiados nas questões de discriminação por etnias. Entre tantos exemplos recentes, assim de pronto cito dois desses solos que já rodaram o País inteiro em temporadas, mostras ou festivais: Emaranhada, com Amarilis Irani, e O Pequeno Herói Preto, com Júnior Dantas. O combate ao racismo está longe de poder sair das pautas e dos enredos, infelizmente. Mas esse dia chegará.
Escrevo isso a propósito de outra dessas maravilhas muito bem acertadas, atualmente em cartaz em mais uma temporada, desta vez no Sesc Avenida Paulista, Pa´Ra – Rio de Memórias. Idealizado, escrito (em dupla com Idylla Silmarovi) e interpretado por Lenise Oliveira, o monólogo se apresenta para a imprensa como “inspirado na cosmovisão Sateré-Mawé, abordando os direitos das crianças indígenas em contexto urbano”. Lenise faz exatamente isso: com sua voz forte, cadenciada e nem por isso menos terna, ela conta para a plateia sua trajetória do Pará para São Paulo e, depois, sua volta às origens, em busca de compreender sua ancestralidade.

O grande mérito do espetáculo, dirigido por Marina Esteves, a mesma diretora que já nos impressionou com Zebra Sem Nome, é justamente essa fluência encantadora da narração solo, proporcionando às crianças urbanas uma visão verdadeira e nada estereotipada dos povos originários, seu modo de vida, seus costumes, suas brincadeiras, suas dificuldades de aceitação – para muito além do 19 de abril, tão caricaturalmente celebrado nas escolas ainda hoje. Aliás, esse espetáculo deveria ser adotado para sempre por professores e coordenadores de escolas, porque ‘ensina’ e sensibiliza muito mais do que qualquer aula, sem ser aula.
É uma direção preocupada não só com a temática, que é muito forte e necessária, mas também com a estética, afinal retratar os povos indígenas não pode ser uma tarefa que deixe de fora peças de artesanato, por exemplo, madeiras bem talhadas e tantos símbolos ligados à floresta. A primeira cena já anuncia o cuidado plástico: a atriz de costas para a plateia, faz trança nos longos cabelos, ao som de chocalho e flauta. Lindo de ver. Primeiro ela descreve a cidade grande onde está (“tanta luz que a gente perde a visão das estrelas”), depois conta de onde veio e como foi sua infância no Pará, imitando a mãe ao gritar para que a menina saia da chuva. Ela impregna de vida as palavras.

O texto é quase o tempo todo poético, bem alinhavado por memórias e comentários potentes, como “Aqui (na metrópole do sudeste) parece que tudo o que eu faço é errado”. Pronto, com essa frase simples ela dá a largada para o tema do desajuste da criança indígena vista como estranhamente diferente no Sul Maravilha. A dramaturgia segue por esse fértil caminho durante a peça toda: dizer sem pregar, contar sem pesar nos tons de militância didática. Ponto alto do texto é definir segurança como “terras demarcadas”. Nos faz pensar o que seria “segurança” para nós. Isso é mais rico e criativo, é mais poético e eficiente do que vomitar nas crianças lamúrias e discursos de engajamentos rançosos. É teatro dos bons. Teatro queconsegue a empatia ao falar da falta de empatia.
Lenise Oliveira não tem só voz boa, tem também pleno domínio do corpo, em cenas de grande impacto visual e notável fisicalidade, como quando interpreta a cobra gigante (de novo de costas e usando bastante a extensão dos braços) ou na hora de virar o crocodilo do igarapé, em uma das mais ricas canções da empolgante trilha original composta por Dani Nega. Ela se inspirou nas sonoridades típicas do Pará, o que significa dizer que misturou a musicalidade Sateré-Mawé ao brega e ao techno brega. Uma delícia para os adultos, uma festa para as crianças.

Outra boa sacada, que contribui para o dinamismo da peça, é quando a atriz assume um tom debochado de animadora de auditório para apresentar às crianças três ‘produtos’ regionais que marcaram sua história: boldo, alecrim e capim cidreira. Cada um deles ganha uma canção divertida e, assim, as crianças da plateia tomam contato com chás e temperos – assuntos tão pouco comuns em peça infantil, mas que servem à perfeição para compor o universo cultural da protagonista. Lenise também lança mão dos momentos interativos, em que faz perguntas diretas à plateia sobre seu povo, sua língua, suas crenças. Nada exagerado nem demorado, tudo ágil e cativante.

Nota de louvor também para o desenho de luz do espetáculo, assinado por Juliana Jesus. Tudo muito bem pensado e executado, com sutilezas e delicadezas. Na hora da floresta, uma explosão harmoniosa de efeitos de sombras. Na cena de plateia, procurando os dois olhos de anta, também a luz é fundamental e divertida, pulando de um canto para o outro. Como se vê, um bom espetáculo se faz coletivamente, ainda que seja o solo de uma atriz. Pa’Ra, Rio de Memórias, com Lenise Oliveira e sua turma azeitada nos bastidores, nos conduz por uma viagem de autoconhecimento (“as respostas estão dentro de você”), como tantas peças já o fizeram, mas consegue o frescor de um teatro pulsante, por ser teatro feito com o ritmo das águas de um rio, águas que, afinal, nunca serão as mesmas a cada mergulho.
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