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Foto: Joao Caldas Fº
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Com elenco poderoso, “O Vazio na Mala” retrata os conflitos de uma família desestruturada pelo nazismo

O espetáculo, escrito por Nanna de Castro e dirigido por Kiko Marques, tem a atriz Noemi Marinho em composição nada óbvia de uma senhora judia de 92 anos.

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Em uma das tantas belas cenas de O Vazio na Mala, a cuidadora Ruth (interpretada por Dinah Feldman) senta-se diante de uma antiga máquina de datilografia para fingir que escreve a biografia de Esther (personagem de Noemi Marinho). “Só as coisas boas, Dona Esther”, avisa a jovem para a senhora de 92 anos, em um momento lúdico, já que o equipamento está sem a fita de tinta capaz de gravar as letras no papel.

Convivendo com o mal de Alzheimer, Esther transita entre a apatia, o delírio e a lucidez e começa a relatar episódios felizes de sua infância em uma Alemanha ainda livre dos traumas bélicos. Relembra as brincadeiras em torno da estátua de um urso na praça da cidade em que cresceu, mas, à medida que as lembranças avançam e as duas grandes guerras mundiais começam a fazer parte delas, entra em desespero. Ela sabe que nada de bom aconteceu depois que a violência entrou em cena para marcar a sua vida e a de tantos outros. Ruth tenta acalmá-la e a cobre com um lençol: “É só ficar quietinha que ninguém vai achar a senhora”.

O Vazio na Mala, texto de Nanna de Castro dirigido por Kiko Marques, em cartaz no Teatro do Sesi, é centrado em uma das tantas famílias dilaceradas pelas consequências do Holocausto, pessoas que foram obrigadas a fugirem pelo mundo em nome da sobrevivência e formaram uma nova vida onde foi possível. As feridas, entretanto, jamais cicatrizaram, e o sangue respingou nas gerações seguintes deste de tantos outros clãs de origem judaica.

A trama ficcional, criada por Nanna inspirada em memórias reais, se passa em 2005. O jornalista Samuel (papel de Emílio de Mello), especialista na cobertura de guerras, vive uma crise existencial com o fim de um casamento e a percepção da falta de sentido em uma carreira que, apesar de bem-sucedida, se alimenta de uma violência infinita. Ele mora em Tel Aviv desde a juventude e volta a São Paulo para se reencontrar com o próprio passado, apesar de usar a desculpa de que deve resolver pendências práticas. A principal delas é a venda do apartamento de seu pai, o violento Franz (vivido por Fábio Herford), morto há cinco anos e de quem evitou aproximação na fase adulta.

O reencontro com a avó, Esther, possibilita a Samuel a chance de abrir a mala de suas origens para se entender como homem. Diante desta licença poética, a dramaturgia de Nanna e a direção de Marques oferecem um delicado retrato de uma família destruída por um sistema, no caso o nazismo. Eles podem ter escapado da morte, mas jamais reconstruíram laços afetivos. Figura fundamental para a compreensão da história é Franz, que, ainda menino, recém-chegado ao Brasil, foi deixado pela mãe em um orfanato até que Esther pudesse encontrar estrutura para criá-lo, e se transformou em um homem amargo e agressivo. A principal vítima foi Samuel, que, se na infância e na adolescência sofria com a mesquinhez financeira, se viu maduro realizando esforços para ganhar a aprovação do pai, nem que fosse por sua capacidade de ganhar dinheiro.

Foto: Joao Caldas Fº

A velha bagagem citada no título e flutuante em toda a encenação acompanhou Esther e o marido na fuga da Alemanha para um então desconhecido lugar da China, Xangai, e, em 1941, desembarcou no Brasil. O argumento parte de uma história real, narrada pelo empresário William Jedwab, primo de Dinah Feldman. A atriz enxergou teatralidade no fato e idealizou o projeto do espetáculo. Na ficção, Esther guardou a mala chaveada em um quarto por seis décadas sob a recomendação de que ela só seria aberta depois de sua morte – algo semelhante aconteceu na vida real. “Aquela mala só carrega dor”, comenta a personagem. “Tem passado que é melhor não mexer”, justifica, em outra passagem.

Muitas histórias já foram contadas sobre as atrocidades do regime nazista de Adolf Hitler (1889-1945) e parece que nada mais de interessante pode ser extraído do assunto. A grande qualidade de O Vazio na Mala, porém, é que o público se vê diante de uma família incapaz de superar as sequelas da violência imposta por uma ideologia genocida. Não existe qualquer citação a nomes ou símbolos que marcaram o período, o que demonstra que tal desestruturação poderia ser gerada, com as devidas proporções, claro, por qualquer outra guerra ou movimento social e político de grande impacto. Mesmo as referências sobre a cultura judaica, que, lógico, reforçam as intenções na dramaturgia e da encenação, não restringem ou personalizam a dimensão do drama humano, principalmente porque aqueles personagens, especialmente os masculinos, são verificados em qualquer base familiar.

Esta amplitude da narrativa pode ser creditada a uma conhecida habilidade do diretor Kiko Marques para levar ao palco épicos familiares. Ao lado de seu grupo, a Velha Companhia, o encenador tem, pelo menos, três significativos trabalhos, Cais ou Da Indiferença das Embarcações (2012), Sínthia (2016) e Casa Submersa (2019), que se apoiam nas relações pessoais redesenhadas sob o efeito de fatos históricos, como o Estado Novo de Getúlio Vargas, o golpe militar de 1964 e o período de redemocratização entre 1990 e 2010. Talvez Sínthia seja o que mais se aproxima de O Vazio na Mala por focar igualmente nos desajustes de um núcleo e ampliar questionamentos sociais e comportamentais.

Se Nanna construiu personagens profundamente psicologizados, e Marques tende a sublinhar as ligações íntimas entre eles, O Vazio na Mala alcança um resultado tão bem-sucedido por conta de um elenco capaz de redimensionar a proposta. O maior destaque é Noemi Marinho, que escapa de todas as ciladas possíveis na caracterização de uma senhora judia com Alzheimer, transmitindo sensações pouco óbvias através de Esther. Sua interpretação alcança um caminho de delicadeza capaz de fundir uma aura infantil sem banalizar a carga dramática das cenas de maior dramaticidade.

Noemi é uma atriz que passa por um processo de reinvenção nos últimos anos em que parece ter descoberto uma economia de recursos que só reforça a sua personalidade de intérprete – um equilíbrio difícil de se revelar no palco em atores de postura marcante. Os espetáculos Unfaithful, dirigido por Lavínia Pannunzio em 2017, e Outono, Inverno ou O que Sonhamos Ontem, comandado por Denise Weinberg em 2022, são exemplos desta fase recente da artista.

Foto: Joao Caldas Fº

Emílio de Mello é tipo de ator que sabe como poucos dosar a linha tênue entre a emoção e a técnica. Os conflitos de Samuel são discretos e não menos doloridos, assim como as suas hesitações ou o desejo de reação não precisam ser evidenciados porque são percebidos pelo espectador através das delicadas nuances. Quem acompanha o trabalho do ator sabe da sua infinita capacidade de convencer através de muito pouco, como no caso de Baque, encenação de Monique Gardenberg para texto de Neil LaBute em 2005, em que Mello representava com brilhantismo um pai que sacrifica o filho recém-nascido na tentativa de preservar o emprego.

Colega de Noemi em Outono, Inverno ou O que Sonhamos Ontem, Dinah Feldman salta de uma personagem maltratada e até agressiva naquela peça para a doce e terna Ruth. A cuidadora é a responsável pelo contraponto afetivo da atual montagem. Enquanto todos os outros personagens perderam a capacidade de praticar a sensibilidade, a Ruth de Dinah surge como aquela figura que abre os olhos de Samuel para que ele, mais uma vez, não fuja da realidade.

Não menos simples é o personagem Franz, defendido com por Fábio Herford, porque, além da complexidade psicológica, é como se ele estivesse em um espetáculo à parte. A sua ação se apresenta como praticamente um monólogo. Franz está isolado na cena, no lado direito da cenografia espelhada construída em dois blocos por Márcio Medina, parte que representa o seu quarto. Assim, em meio às lembranças de Samuel e Esther, Franz paira como um fantasma evocado através das lembranças do filho e da mãe.

Violento, hostil, com o tom de voz acima do dos colegas, Herford expõe brutalidade sem deixar de sublinhar que a origem de toda essa atitude vem da dor, que, em mais uma das frases de Dona Esther, é reforçada e sintetiza os dramas dessa família. “Passou, Dona Esther?”, pergunta Ruth. “Não, não passou, continua lá dentro das pessoas. E, se a gente não cuidar, volta”, alerta a personagem vivida por Noemi Marinho.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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