Fábia Mirassos estreia nova temporada do solo Vienen Por Mí, da chilena Claudia Rodriguez, no Sesc Avenida Paulista
Espetáculo dirigido por Janaína Leite é uma espécie de manifesto poético e delicado sobre a existência das pessoas trans.
Atravessada pelo texto e pela experiência da dramaturga chilena Claudia Rodriguez, a atriz brasileira Fábia Mirassos reestreia o solo Vienen Por Mí, um manifesto sobre a existência e o corpo transgênero.
Escrita e atuada por uma travesti, a peça é um convite para contestar as autoridades de forma plural e cênica, misturando maquiagem e filosofia travesti, ao propor metáforas que incluem o corpo travesti em diferentes linguagens, como poesia, performance, monólogo e stand-up. Trata-se de um efeito de recorta e cola de diferentes gêneros textuais, assim como a travesti, que, muitas vezes é recortada e colada de seu corpo, de sua família, de sua história ou de sua casa.
“Quando você pega o texto, vê que ele foi construído a partir de várias colagens, de várias experiências da Claudia. Ela é uma ativista muito forte no Chile e cuida da integridade das meninas que fazem programa, em situação de vulnerabilidade e de rua. Eu acho que ela foi colhendo histórias, informações e vivências e colocou tudo no papel. Acho que, para a sociedade, nós travestis somos um grande e incompleto quebra-cabeça, porque, para podermos existir e sermos quem realmente somos, precisamos sempre recortar, colar e sobrepor uma série de camadas. Estamos sempre sobrepondo peças, tentando encaixar uma na outra”, explica a atriz Fábia Mirassos, que idealizou o espetáculo.
Fábia conta que conheceu o texto da dramaturga chilena na pandemia, quando participava, como atriz convidada, das lives do projeto “Histórias de Nossa América”, do Coletivo Labirinto, que investiga por meio de criações cênicas latino-americanas as relações dos sujeitos com o seu panorama social.
“Vendo esse texto e pensando que a Claudia deve ter só 10 anos a mais que eu, eu me identifiquei muito. Toda a história dela fez com que ela escrevesse essas palavras. E ela fala que isso é uma dramaturgia pobre, uma poesia travesti. Nossa realidade é igual em todos os lugares do mundo – e nada muda. Temos a ilusão de que o mundo está mudando e que existe uma conscientização social a respeito dos nossos corpos e de tudo que é considerado minoria. Mas continuamos morrendo nas ruas”, reflete Mirassos.
Com tom poético e delicado, a peça possibilita a construção de uma biografia travesti diferente daquelas que aparecem nos obituários dos jornais. Porque se trata de uma travesti escrevendo sua história enquanto vive. Ela recebe o público como se estivesse em sua casa, cozinha para os presentes e conversa com todos sobre sua vida, seus sentimentos e sua identidade.
“Acho que a denúncia não precisa ser gritada – muito pelo contrário. Vivemos em uma era de lacração, o que eu acho péssimo. Quanto mais a gente lacra, menos existe abertura para a conversa. Temos que parar de pensar só no nosso umbigo e começar a colocar na prática o que está no discurso. Só assim é possível criar essas fendas na sociedade machista. Não estou aqui para deixar ninguém desconfortável, mas para falar tudo o que eu tenho para falar. Quero colocar todo o ressentimento que tem dentro de mim com carinho, com todo o amor travesti. É trabalhar com a surpresa. Vamos fazer uma denúncia sem grito, para que as pessoas possam nos ouvir e comecem a conviver conosco com respeito”, esclarece a atriz.
E essa união de forças pela sobrevivência dos corpos trans é antecipada no próprio título da peça, que pode ser traduzido por “venham comigo”, “venham por mim”, “venham junto de mim”. “Eu acho que é meio isso, venham para perto de mim sem medo, podem me tocar e me ouvir sem medo. A grande questão levantada pela peça é o quanto nossa sociedade machista e patriarcal odeia as mulheres – tanto as cisgênero, como as trans e os homossexuais afeminados. Todos que se aproximam do feminino já parecem estar sujeitos à violência e à morte. Por isso, precisamos estar realmente juntos contra tudo isso – e não apenas no discurso nas redes sociais”, provoca Mirassos
“Para mim, a nossa sociedade é dividida em uma pirâmide em que o homem branco hétero está no topo e, a partir daí, é cada um que lute de acordo com seu privilégio. Eu, enquanto travesti, ainda que esteja abaixo de muita gente na pirâmide, estou no topo do meu privilégio, já que nunca tive de me prostituir, nunca vivi na rua, pude estudar e estou viva aos 44 anos. Mas eu sou uma exceção e isso é péssimo. Eu não quero ser a única, quero que outras travestis possam viver mais de 35 anos, que possam ter as mesmas oportunidades e conviver naturalmente com outras pessoas ditas ‘normais’ pela sociedade”, acrescenta a Fábia.
Sobre a atriz-idealizadora
Fabia Mirassos é atriz e visagista. Trabalhou com a Cia. Os Satyros em diversos espetáculos como “A Vida na Praça Roosevelt” (2005), “AmorTempo” (2006), “CorpoEngrenagem” (2015), “Justine” (2016), “Pink Star” (2017).
Também atuou nos espetáculos “As Moças” (2009) e “Roda Cor de Roda” (2011); “Por Trás das Lonas de Babilon” (2016) com o grupo Os Babilônicos; “[A]Gente” (2018) com a Cia. do Terreno e com reestreia em 2020 onde, além de atuar, assina também a dramaturgia, o visagismo e adereços de cena; “Luis Antônio – Gabriela” (2018) com a Cia. Mungunzá e “Por Que a Criança Cozinha na Polenta” (2018), onde assina o visagismo; “Máquina Branca” (2019) de Ave Terrena Alves; “Interditos” (2019), de Nelson Baskerville e “Brian ou Brenda” (2019) de Franz Keppler com o qual recebeu o prêmio de melhor atriz coadjuvante do Observatório do Teatro. É atriz das séries “Nós” (Canal Brasil) e “Todxs Nós” (HBO).
Participou como atriz convidada do projeto “Histórias de Nossa América” (2020-2021) do Coletivo Labirinto, que visava fomentar a dramaturgia latino-americana por meio da leitura de textos de diversos dramaturgues como Claudia Rodriguez, Gabriel Calderon, Dione Carlos e Mariano Tenconi Blanco e, além disso, contava com a direção de diversos profissionais como Érica Montanheiro, Lavínia Pannunzio, Carlos Canhameiro e Malu Bazan.
Co-produziu e atuou no curta-metragem “Isolatta” (2020) contemplado pelo edital de emergência audiovisual “Arte Como Respiro” do Itaú Cultural. Também produziu e atuou, em parceria com o estúdio Nu, nas peças “Isso Não É Uma Peça” (2020) com estreia no Satyrianas e “Porco-Espinho” (2021) contemplado pelo edital cultural Qualicult da Qualicorp. Atualmente está produzindo e atuando no curta-metragem “Cancelatta”, contemplado pela Lei de emergência cultural Aldir Blanc (2021).
Sobre a diretora
Janaína Leite é atriz, diretora e dramaturgista. É uma das fundadoras do premiado Grupo XIX de Teatro de São Paulo e doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da USP. Em 2008 deu início a sua pesquisa sobre o documentário e o uso de material autobiográfico em cena, resultando em diversos espetáculos e no livro “Autoescrituras performativas: do diário à cena”, publicado pela Editora Perspectiva. Em 2019, estreou o espetáculo “Stabat Mater”, contemplado pelo Edital de Dramaturgia para Pequenos Formatos do Centro Cultural São Paulo e ganhador do prêmio SHELL de melhor dramaturgia. Foi ainda finalista do prêmio APCA e eleito melhor espetáculo do ano pelos críticos do Jornal do Estado e da Folha de São Paulo. Trabalha com orientação de cursos, palestras e curadoria no Brasil e em países como França e Portugal.
Ficha Técnica:
Idealização e Performance: Fabia Mirassos
Texto: Claudia Rodriguez
Tradução: Carol Vidotti e Malú Bazan
Direção: Janaina Leite
Assistente de Direção: Emilene Gutierrez
Colaboração Artística: Carol Vidotti
Desenho de Luz: Aline Santini
Assistência e Operação: Luz Henrique Andrade
Visagismo: Fabia Mirassos
Concepção e Confecção de Figurino: Fabia Mirassos e Salomé Abdala
Direção de Arte e Designer Gráfico: Renan Marcondes
Áudios em Off: Ave Terrena, Claudia Rodriguez, Maria Leo Araruna e Renata Carvalho
Sonoplastia: Ultra Martini
Fotos: Hugo Faz
Direção de Produção: Carol Vidotti
Sessão com tradução e interpretação em Libras no dia 19/05.