Lauanda Varone expõe experiência na casa Dom Inácio de Loyola, comandada por João de Deus, no solo ESTUFA – Um Falso Testemunho, que estreia em março na Oficina Cultural Oswald de Andrade.
Com direção de Erica Montanheiro e dramaturgia de Angela Ribeiro, espetáculo é um grito sobre como as mulheres podem sobreviver mesmo quando seus corpos continuam sendo vilipendiados na sociedade patriarcal.
A atriz Lauanda Varone compartilha a experiência de ter sido uma das mais de 300 mulheres que sofreram abusos pelo médium João de Deus no solo Estufa – Um Falso Testemunho.
Com fama internacional, o médium João Teixeira de Farias foi cultuado durante décadas pelo trabalho de cura espiritual que realizava na Casa Dom Inácio de Loyola, no município de Abadiânia, no interior de Goiás. O fato de ele usar sua influência para induzir mulheres a atenderem seus desejos sexuais como se estivessem passando por trabalhos espirituais tornou-se público em 2018, depois da denúncia feita pela vítima Zahira Mous na TV aberta.
Antes disso, embora tenha sido denunciado por outras mulheres, o médium usou de seu prestígio para abafar esses relatos e a Justiça alegava não ter provas para condená-lo, como se considerasse as denúncias dessas vítimas falsos testemunhos – daí vem a inspiração para o nome da peça.
Desde então, centenas de mulheres ganharam força para expor suas tragédias pessoais e denunciar os abusos cometidos pelo médium. “Este projeto surge como uma forma de sair de um soterramento. Desde 2018, me deparo quase que diariamente com notícias, livros e documentários que me confrontam com um assunto que tenho tentado fugir desde sempre. Não deu mais. Precisei olhar de frente e colocar para fora a voz de quem viveu os abusos cometidos pelo médium João de Deus por 16 anos”, explica Lauanda.
A atriz conheceu o abusador aos 13 anos, quando começou um tratamento espiritual na Casa Dom Inácio de Loyola, depois que seu primo foi curado de um câncer em estado terminal e mudou-se para Abadiânia para ficar perto do médium. Ela passou por esse suposto tratamento até os 28 anos, quando soube que centenas de outras mulheres passaram pela mesma violência.
Como não havia muitas crianças na casa, ela logo foi notada por João de Deus. “Desde o primeiro ‘atendimento’, ele sabia que se tratava da parente de uma pessoa próxima e conhecida por todos. O médium, ciente da ausência paterna na minha vida, fazia questão de me apresentar como ‘filha’, deixando claro o grau de proximidade que tínhamos e seu interesse paternal por mim. Todavia, interesse paternal nesse caso não tem um significado comumente atribuído à expressão, considerando que ele abusou sexualmente de sua filha mais velha quase toda a vida”, desabafa a atriz.
A atriz iniciou tratamento espiritual na Casa Dom Inácio de Loyola aos 13 anos, depois de casos de cura em sua família, inclusive com familiares que se mudaram para Abadiânia por causa da Casa. Ela passou por esse suposto tratamento até os 28 anos, quando soube que centenas de outras mulheres passaram pela mesma violência.
A dramaturgia do espetáculo foi escrita por Angela Ribeiro, a partir dos relatos de Lauanda Varone e em colaboração com Ana Elisa Mattos e Erica Montanheiro. Na trama, uma mulher conversa com o público em sua estufa e, à medida que fala sobre suas plantas, conta segredos que guardou por muito tempo.
“Trabalhamos praticamente o ano passado inteiro para levantar essa dramaturgia. E demoramos muito tempo para escrevê-la justamente por ela ter surgido de uma experiência muito próxima. A importância de trazer isso pra cena é realmente ressignificar e reescrever essa experiência, pensar em formas de sobrevivência – quase uma espécie de reparação. Não queremos reafirmar a vitimação, o sofrimento, mas discutir como fazemos pra virar o jogo quando nossos corpos estão sendo vilipendiados há muito tempo. A mulher não pode andar com roupa curta, ela pode ser estuprada até dentro do hospital e até depois de morta seu corpo é abusado. Então, queremos discutir como lidar com tudo isso gritando e exigindo que as coisas mudem, mas ao mesmo tempo lutando para continuarmos vivas”, comenta a diretora Erica Montanheiro.
O texto mistura a experiência real com a ficção para propor uma reflexão sobre o silenciamento sofrido pelas vítimas do abuso sexual e a conivência por parte da sociedade, o que faz com que que essas mulheres acabem não denunciando seus agressores.
“Mais do que denunciar os crimes de abuso cometidos pelo ‘médium’, buscamos ler a experiência como disparador de questões de violências cometidas contra os corpos de mulheres cis (neste caso específico) e que são sustentadas por um sistema patriarcal. Somente expondo as contradições e os jogos de poder que existem em comum a todas as histórias, será possível penetrar o terreno da tormenta – campo de batalha sobre o qual os corpos ditos femininos levantam e caminham todos os dias”, reflete Montanheiro.
Já a encenação é toda construída a partir de diferentes camadas e linguagens. “Sugerimos ao público que as pessoas que se identificam como homens se sentem de um lado da plateia e as mulheres, do outro. A cena acontece no meio. O próprio espaço de cenografia é quase uma instalação. E temos também camadas de projeção em vídeo, uma trilha sonora composta para o espetáculo e outros elementos muito fortes. Esta não é uma peça em que entram só no texto e a atriz. Precisávamos de outras linguagens para poder contar a história, porque não é uma história fácil”, acrescenta.
Para discutir todas essas questões, o espetáculo traz um núcleo majoritariamente feminino, que ainda conta com direção assistente de Ana Elisa Mattos, direção de arte de Joyce Roma, direção audiovisual de Julia Rufino, desenho de luz de Aline Santini, direção de movimento de Bruna Longo, produção de Louise Bonassi e Tatiana Veliz e fotografias de Priscila Prade. Ainda participam do grupo L.P. Daniel, responsável pela criação musical, e Daniel Infantini, pelo figurino e visagismo.
Ficha técnica:
Idealização – Lauanda Varone
Elenco – Lauanda Varone, Ana Tolezani e Eduarda Maria
Dramaturgia – Angela Ribeiro (em colaboração com Ana Elisa Mattos, Erica Montanheiro, Lauanda Varone)
Direção – Erica Montanheiro
Direção Assistente – Ana Elisa Mattos
Direção de arte – Joyce Roma
Direção Audiovisual – Julia Rufino
Desenho de luz – Aline Santini
Direção de Movimento – Bruna Longo
Criação Musical – L. P. Daniel
Preparação Vocal: Andre Checchia
Figurino e visagismo – Daniel Infantini
Fotografia – Priscila Prade
Maquiagem e cabelo fotos – Fábia Mirassos
Design Gráfico – Angela Ribeiro
Adereço – Ateliê Casa Amarela: Michele Rolandi, Tide Nascimento, Fabiones Perez
Produção – Louise Bonassi e Tatiana Veliz
Assistente de produção – Dairzey Abnara